segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Ambiguidades

Ambiguidades


Começar pelo fim é sempre uma tentação. Porque o início fosse vago e fortuito, por razões de poupança vocabular, de energias e tensões de esforços, se calhar e principalmente para quem lê que, de um pulo entre margens, pode encontrar feliz o alfa e o ómega da narração, sem ter que mondar os enleios daninhos que dificultam o frutificar do conto ou, simplesmente, porque seja no fim que sempre acaba tudo, estraleje ou não, festivo, o foguetório. É igualmente tentador fazer descansar o narrador dando-lhe tempo a pensamentos vivazes.
Por isso vamos lá acabar, o que não começámos.

A rapariga que estava à minha frente, na mesa da marisqueira em que bebíamos o café, usava nessa noite uma camisola de lã que ainda não lhe tinha visto. Mal conseguia tirar os olhos da dita camisola de malha que moldava o peito saliente e apetitoso da minha amiga, dando um aspecto ondulado e esvoaçante à “stars and stripes” tricotada. Dividia a minha atenção entre o noticiário emitido na televisão colocada na parede ao fundo, e o irritante revestimento propagandístico usado pela minha companheira.
Isto resultava da tentativa de me alhear dos lamentos e ais, das vaporosidades e lantejoulas de gente, acerca da qual eu nem conhecia o nome, expressos por um intromissivo sujeito conhe-cido de ambos, e que tinha parasitado a nossa conversa a qual eu pretendera dirigir, de acordo com a minha vontade erótica, para lugares e sensações de acentuada volúpia.
Quando chegou e, de sua própria lavra, como charrua cega em campo de ceifa, lá ia adiante, soterrando as minhas melhores intenções, frutos já amadurecidos pelo quente e belo sol que eu disponibilizara para aquela relação, nos últimos tempos.

Aqui, devo dizer que não gosto de ornamentos espalhafatosos ou muito grandes nas roupas que visto e, no entanto, admito que outros gostem de ostentar símbolos, marcas, bandeiras e demais estampas de decoração à laia de feira de província, ou como se fossem piercings ou tatuagens escondidos à vista de todos.

O que me convulsionava o pensamento era que as pessoas pudessem usar algo que não tivesse uma ligação lógica e razoável consigo. Porque é que alguém português exibiria o símbolo de um orgulho nacional que não era o seu? Inglês, espanhol, italiano, francês, alemão, canadiano…  

Ainda por cima, aborrece-me o facto de, chegando a ser moda e não passar de moda, a bandeira dos Estados Unidos da América do Norte, ser vendida massivamente e usada em todas as circuns-tâncias, por qualquer um e em toda a parte do mundo, como representação da dominação daquela sobre as demais… Sobre a bandeira nacional do meu País, no meu País… Sobre a minha bandeira.


Com o nosso conhecido intromissor ao lado dela, afogado na dissertação loquaz e definitiva sobre uma elite fotopatética, via eu a mesma bandeira dar cores de fundo a um patriótico e voraz, igualmente definitivo e loquaz discurso do mais perigoso intruso: o “civilizador” George W. Bush, exortando os povos estrangeiros para a sua dádiva impositiva de “democracia”, “liberdade” e “paz”, numa enorme tenda de campanha montada para o efeito, algures no Iraque ocupado, dirigindo-se às suas tropas e televisões que depois o levariam aos lares de todas as terras do mundo.


Farto de invasões e intrusões e com o paladar do café na boca a pedir sabores mais fortes, puxei um guardanapo de papel do suporte que estava sobre a mesa, e escrevi o meu antiameri-canismo do momento, em maiúsculas firmes, fora do alcance do olhar abusivo do nosso companheiro de mesa.

apetece-me rasgar-te essa camisola!!!!

Dobrei a mensagem e pegando na mão da minha amiga colo-quei-a ali, fechando-lhe os dedos.

Ela desdobrou a sua atenção no papel macio, vincado. Enquanto as suas mãos desenrugavam a breve missiva, alisou a desconversa com o “emplastro” pondo fim ao assunto e, com os olhos fulgentes apontados aos meus, disparou com a voz ligeira-mente rouca:
Já não era sem tempo…!

  Lisboa, Agosto de 2010
 João Rodrigues

1 comentário:

  1. Ambiguidades
    É uma leitura diferente das outras.. Gostei pois tem uma mistura sobre Pátria, gostos regionais e bem como não poderia faltar um ar de amor solto no ar..rs rs
    Falo o que penso e sinto..e "Ambiguidades" o própio nome diz.
    Parabéns.. João Rodrigues.

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