quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A flor do fogo


A flor do fogo


Só posso falar de mim ou por mim. Aquilo que os outros possam dizer não me interessa agora.

Já me senti dilacerada apenas por suspeitar pensamentos cruéis que alguém, mesmo desconhecido, pudesse tecer acerca da minha pessoa. Agora não.

Serei, certamente, julgada e julgarei também.

Hoje não!

Sinto-me ébria de felicidade, de paixão, de música com cheiros de corpos acesos e mar-poente. De eufórica irracionalidade.

Não posso dizer que tenha ficado cega. Cega era eu antes de encontrar dentro de mim esta ternura insaciável que retoma e liberta a cada instante as fantasias até aí refugiadas num escani-nho de alma, ou naquele lugar mais recôndito do entendimento onde a própria luz se recusa a brilhar.

Começou, talvez, quando, muitos anos atrás, saboreei o suor do mar e o calor lânguido da areia a incendiar-me a pele. Senti, então, ondas de prazer e volúpia desconhecidos, que se lançavam para fora de mim incontidas. Retribuí, com pressão receosa, o contacto sub-reptício e misterioso dos dedos do meu primo, vaga-rosos e trementes no interior das minhas coxas.

Imaginava, os olhares postos em mim enquanto o sol, cúmplice e amigo, ajudava a disfarçar o meu rubor e o gozo furtivo entre rochas e maresia e, a mão oculta numa toalha, a fazer explodir vida nova na mulher completa que, sabia agora, já era.

Sonhei anos e anos com essa praia, em que iria morrer como vaga, ora ténue e espuma branda, ora em fúria alterosa e espas-mos loucos, onde, depois rendida, lançada sobre o areal me aninhava. Sonhei com a praia onde os meus tios, emigrantes em férias, me levaram um dia, há tanto tempo.

Sem saber o que fazer com os sonhos, de olhos desvendados e parados, vencia os meus dias à espera de acordar. Na solidão das noites fustigava-me, reinventando secretamente com retalhos de lembranças e as mãos ardentes, o meu ávido desejo de amar.


Não sei bem como tudo começou. Sei apenas o som daquela voz cariciosa e sedutora e, o detalhe do toque deleitoso como flor de fogo na minha pele.

Era um fim de tarde estreitado nas horas de Inverno, para mim igual a todas as outras tardes do ano, excepto na humidade pressentida e no frescor que agora começava a picar-me, acima das botas altas, as pernas nuas sob a saia justa de cabedal preto. Sentia eriçarem-se-me os bicos do peito sob a camisola de malha de gola alta.

Voltava da empresa onde trabalhava como telefonista, e apa-nhei no Rossio, como sempre, um autocarro que me transportava até Campo de Ourique.

Sentada, percebi que o autocarro enchia depois de eu ter en-trado. Nos Restauradores… na Avenida… as vozes, os cheiros, o ro-çagar de roupas e sacos, os protestos de quem, em pé, levava uma pisadela ou, pior, experimentava a sensação do encosto de uma ponta de chapéu-de-chuva.

Rua Alexandre Herculano. As reclamações desvaneceram-se… Rato sai meio-mundo e entra outro meio. Av. Álvares Cabral – tenho que estar atenta, já não falta muito –. Jardim da Estrela… Domingos Sequeira, pára e levanto-me para chegar à porta da frente, saio na próxima.

Com brusquidão o autocarro arrancou, apinhado ainda. A saia ficou presa em qualquer coisa que não percebi, enquanto fui atirada com o magote de passageiros para a frente e, logo, para trás, soltando-me. Tive a sensação de que cairia desamparada. Fui travada por umas mãos e braços fortes que, estranhamente suaves, me pousaram no assento de onde tinha saído. Titubeante procurei dizer que ia sair. As mãos fortes, agora, de pé ao meu lado, disseram com voz ligeiramente rouca e vibrante:

– Calma. Também vou sair. Sai muita gente nesta paragem, além disso, vamos parar ainda no sinal… Eu ajudo-te.

Pousou-me a mão no ombro, tal pássaro hesitante em voo incerto, ao chegarmos perto da paragem. Parei de respirar por um momento apenas para na inspiração reter o odor que me inebriava os sentidos. Um momento que quis prolongado e guardá-lo, saben-do que a paragem poria fim a devaneios e que em breve estaria em casa.

Debruçou-se e tomou-me o braço erguendo-me com igual bran-dura como a que tivera ao sentar-me. – Vamos – disse.

Notava alguma atrapalhação nele ao auxiliar-me a descer. O meu peito erecto, do frio exterior, apertava-se no calor dos dedos que me seguravam ainda o braço.

Não era capaz de dizer, simplesmente, obrigada. Ou, não seria isso que queria dizer. Não queria deixá-lo ir e não sabia como.

– Por acaso, não quer ir comigo, tomar um café… ou outra coisa qualquer, ali ao “Canas”? – Inquiriu ele, vacilante.

Sempre me tomei por uma mulher decidida mas, naquela altu-ra, senti uma espécie de afogamento que me trancava a voz.

– Se não quer… É só atravessar a rua… O “Canas”… ou vamos aqui a este da esquina.

O ruído das buzinas, o estrídulo avanço de um eléctrico e o vozear das pessoas que passavam, libertaram-me da mudez.

– Tenho que ir para casa. Já estou atrasada… – menti, e fui in-terrompida como se ele esperasse a resposta.

– Por favor. São só dez minutos… tomar um café não demora mais…

Fui.

Segurada nele até aos semáforos à esquina e, depois, dali atra-vessar a rua e ir ao “Canas”, pareceu-me que o tempo encurtava. Pareceu-me também que era ele, agora, quem levemente fazia roçar o braço que eu agarrava, no meu peito.

Procurei a mão dele tomando-a com força, comprimindo-a no meu seio, senti os seus dedos abrirem e fecharem, devagar, ten-tando acariciar, prendendo com suavidade o bico erecto. Puxei para baixo e, de mãos dadas, a rasar ao longo do corpo, caminhá-mos lado a lado, tocando-nos mutuamente, consoante o movi-mento que fazíamos, andando, calados, até alcançar a esplanada.

Não ficámos aqui. Estava desconfortável cá fora. Atravessámos a entrada, percorremos o espaço ao longo do balcão lateral e, ao fundo, chegámos a uma sala onde os sons tomavam asas e revoavam no espaço amplo. Ele escolheu uma mesa de forma a estarmos lado a lado.

A proximidade era pretexto para se fundirem em amálgama as sensações que o corpo reivindicava inquieto.

Tudo o que fazia, ainda, deter os impulsos exigentes do meu sangue a fervilhar, era que o desconhecia. Não como ele fosse, se tinha ou não escamas. Que fosse apenas feito de água tépida e límpida, ou possuísse luas nas órbitas oculares, para desse modo abrir a noite à minha passagem. Fosse lá como fosse… Só queria descobri-lo, percebê-lo, saber quem estava ali, que pretendia… Como me via a mim?
Queria vê-lo.

Um afago na nuca e estremeci. Respondi com a polpa macia e hábil dos meus dedos no rosto estranho.

Tinha uma cara oval, simétrica, de olhos algo cavados e redondos, onde sobressaía o nariz arredondado na extremidade, a boca expressiva de lábios firmemente desenhados. Não tinha cor-tado a barba nesse dia e talvez nem no dia anterior. Era belo, tal como o via.

Pudesse eu ser outra e olhá-lo de frente, que os meus olhos desassossegados revelariam a necessidade de me entregar de corpo inteiro, num amor feroz, único e definitivo, como se fosse o último voo da águia de asas vigorosas a rasgar um véu de lume em toda a sua pele.

As breves palavras que cruzámos, como espadas de corsários em abordagem numa luta corpo a corpo, foram os nomes próprios de cada um e pouco mais. Os emudecimentos cada vez mais prolongados, tomavam conta de nós, enquanto em redor crescia um ruído de fundo na casa a encher-se de gente a constranger-nos.
Tinha que sair dali.

– Já é noite – disse ele –. Vou contigo.

Alguns passos andados, desabou o céu. Trôpega, presa nele tentava seguir o seu andar apressado.
Na direcção de Santa Isabel a chuva e o vento inclementes fustigavam-nos. Cobriu-me a cabeça com o blusão passando o braço em volta dos meus ombros.

A porta de um prédio, entreaberta sugeriu-nos abrigo mo-mentâneo.

No côncavo em que nos recolhemos agarrados, enfiámos as mãos nos segredos dos corpos e beijámo-nos furiosos, tensos, apressados.

Percorri-lhe a carne quente definindo, desde o cabelo revolto que lhe emoldurava a face, a cada ponto, cada músculo, desven-dando, em cada frémito que me respondia ao tacto, a simbiose da paixão que nos fazia um único ser.

O temporal de lascívia e sensualidade éramos nós. Tremíamos em carícias e espasmos desafiantes. Ribombou o céu lá fora e nós por dentro.

Depois, sossegados, saímos com todos os céus apaziguados, sem darmos pelas goteiras ou as poças de água que atapetavam o caminho.

Enquanto tirava da mala e desdobrava a minha bengala, um silêncio que apagava tudo em redor, entranhava-se-me na mente, embora sentisse o corpo dele junto ao meu.

– Diz aos teus pais que encontraste o teu primo… – disse, lançado num argumento qualquer que já não consegui ouvir.

Sim – pensei –, pode ser. Sempre posso vir a dizer que encon-trei finalmente o meu primo.


Lisboa, 28 de Novembro de 2009
João Rodrigues

2 comentários:

  1. Duas estórias iguais mais distintas ao meu modo de ver..cada um cada um, se tivesse que escolher? Queria as duas igualmente. rs rs
    De literatura nada entendo, e sim do que leio e sinto..e é muito bom ler o que acabei de ler...
    Parabéns... João Rodrigues.

    ResponderEliminar
  2. SAUDADES DOS ESCRITOS DO MEU AUTOR PREDILECTO, HOJE QUANDO QUERO LER UMA POESIA, UMA CRÔNICA, TENHO QUE PROCURAR OUTROS BLOGGER - ISSO É ERRADO? NÃO. COMO TAMBÉM NÃO É ERRADO EU SENTI FALTA DO AUTOR QUE GOSTO DE LER.
    NOS SURPREENDA A QUALQUER MOMENTO, COM ALGO NOVO..TODO DIA EU PASSO E DOU UMA OLHADINHA NA ESPERANÇA DE QUEM SABE, TALVEZ! Abraços ao Autor.

    ResponderEliminar