Imagem extraída do blogue: SARRABISCOS |
Regresso da Póvoa
No emaranhado raciocínio, que nascia do mistério da tua pre-sença, ali, na plataforma da estação ferroviária do fim-do-mundo, abrias clareiras a golpes de lucidez, povoando de palavras mágicas o papel vazio.
Não se pode dizer que te tenha conhecido na intimidade. De ti, conheci no teu rosto o traço que um deus-artista teimou pintar.
Vi como usavas uma saia esvoaçante e leve assemelhando-te a uma borboleta que te namorou quando passaste.
O astro-rei esbraseava a tarde e pousava no teu cabelo, agi-tado por suspiros de brisa, os seus dedos de ouro, acariciando-o ternamente até fulgir.
Ainda recordo o aroma doce a canela que desprendido da tua pele se misturava na fragrância quente que vinha dos canteiros ajardinados da estação dos caminhos-de-ferro.
A Póvoa deixava de existir, ali, contra a parede que anunciava o fim da linha.
Apesar de tudo, para mim, tratava-se do princípio da jornada de regresso à cidade grande… ao Tejo!
Deixara de existir, disse eu. Trazia apenas, pendurado no fio da memória, como contas de um colar desfeito; o casino, a praia, a estação e… o tribunal onde tinha sido conduzido por dois chuis que, em vão, procuravam não parecer o que eram.
Ah!... e tu. Sim, tu estavas lá, tinhas ocupado o espaço de tudo o resto e deixaras-me somente uma nesga de olhos para te absorver e levar a Lisboa.
– Já foste a Lisboa? – perguntei.
Talvez tenha sido o momento em que decidi falar que esco-lheste para te sentares no banco a meu lado e olhando rapi-damente, de soslaio, mediste mais um palmo de banco para nos distanciar. Nada mais… e era tanto. Foi então que não cheguei a saber o som da minha voz. Não cheguei a saber se conhecias Lisboa.
Não cheguei…, e já partia.
Mas, foi porque transpareceste que te desnudei a alma num repente em que deixaste escapar da tua existência ternuras ner-vosas com luares malditos e canções de vento.
Em caracteres largos e firmes centraste no cume da página:
Pesadelo
… De onde eu saíra, pensei. E tu penetravas nele a fios de tinta, tecias versos que arrimavas com rimas soltas, livres, insensatas a porem febre e fogo nos teus olhos. Não conseguias parar. Estive quase… quase, a travar-te a marcha no papel, gritando que estava ali a espreitar dentro de ti, descuidada.
Talvez tivesse gritado mesmo, pensei quando te viraste para mim.
Fixaste-me dois segundos sem me veres. Acordaste e, de magia interrompida, tapaste a folha do teu “Pesadelo” para que não a devassasse a intrusão do meu olhar vadio.
Não voltei a “falar-te” da vida nas terras do Tejo, ou da força dos homens que por lá vivem. Talvez porque me faltou a força, talvez a vida me falhasse… Talvez fosses só mais uma lacuna num qualquer dos meus rascunhos sempre inacabados.
Neste emaranhado raciocínio abriste clareiras de lucidez, fechaste o caderno, ergueste-te e, resoluta, pairaste pela plata-forma do fim-do-mundo para tomar o comboio, onde me abando-naste a povoar de loucura o meu papel vazio.
Póvoa de Varzim-Lisboa,
Junho de 1996
João Rodrigues
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