terça-feira, 12 de outubro de 2010

O tiro fatal

O tiro fatal



A sombra fria que invadia o chão a gritar de sede, clareava, transformando o castanho-escuro da terra fendida, aveludada de pó, até ao alaranjado fogo que revelava o pano de leito do sol a aninhar-se no horizonte de cinza.
A meio caminho do poente, o medo, cravava-se àquele chão sorvendo a própria morte nas raízes de carvão ramificadas. Espec-tro de árvore entranhado no silêncio, a rasgar com o corpo negro, todo o espaço em redor, lançando unhas, acesas no lume do sol ja-zente, nas extremidades dos braços nus, nascidos de outros braços nus que se afilavam, cada vez mais, na direcção dele.

Retirou o olhar da paisagem inquietante, para o deixar escorrer sobre as breves linhas alinhavadas.

Meu Amor,
Tudo o que te digo aqui, não passa de lugares-comuns nos quais lembro quem fomos antes de partires, o que quisemos ser, o que tomámos um no outro como saque de conquista, fazendo nosso o melhor – e o pior também – que era exclusivo, íntimo e secreto em cada um de nós.
Digo-te o gozo pleno de aventura que foi ter-te achado e, esse momento, para sempre reencontrado em cada respiração, em cada abalo sísmico por cada folha tombada, cada renovo de paixão.
Falo-te da cova que abro agora, neste abismo de distância, por não conseguir imaginar-me fora de ti...

A caneta, que permanecia muda na mão inerte, caiu no tampo da secretária.
Não sabia como dizer a Laura que o fim daquele quadro, estava ali, agora, lívido de clareza inexprimível e inevitável. Não sabia…
Com a lentidão que já tinha visto no cinema, abriu a gaveta. Tirou a pistola, bateu no carregador, puxou a culatra e, com um estalo seco, metálico, a bala alojou-se na câmara. Destravou a arma e ergueu-a à altura dos olhos. Apontou…
Teria que ser um único tiro para acabar com aquela miséria. O dedo tremeu-lhe no gatilho. Prendeu a respiração… Pressionou... A explosão feriu a sala.
Contundente, a bala alojou-se no meio da nesga do sol, ainda parado, daquele horizonte odiento.


Trémulo ainda, pousou a arma na secretária, e escreveu:

Laura,
Voltei hoje a ter a capacidade de pensar.
Matei aquela coisa maldita... Pintura horrorosa, anquilo-sante e castrante que a tua mãe me ofereceu.
Volta depressa. Beijo-te meu amor.”


Lisboa, 9 de Outubro de 2010
João Rodrigues

domingo, 3 de outubro de 2010

O telefone toca… toca… e a Morte não atende

O telefone toca… toca…
e a Morte não atende 


O meu amigo Rómulo fazia juízo cínico e feroz da sua mãe, uma mulher que teria mais ou menos a minha idade. O rosto dele contraía-se, os olhos desorbitavam e as palavras pareciam folhas de serrote com dentes partidos a enrolarem-se numa dislexia nascida da espuma que nos cantos dos lábios se formava em rebentação, ao construir o atrito mais inclemente a respeito daquela mulher.

O Rómulo, parecia querer defender a honra do pai, invec-tivando, criticando e inventando a mãe e reinventando o pai. Responsabilizava-a por tudo que de mal lhe acontecia, incluindo a partilha do espaço estreitado na pequena casa que era do avô e onde os três tinham vivido: o avô, a mãe e ele.

Dela, era a culpa do pai ter ido viver com outra mulher: a Mia. E, dela era a culpa, de o pai estar hoje, sozinho. Ela era culpada da separação dos filhos, pois que, se o Rómulo morara com ela e o avô, o outro filho, o Acácio, vivera até juntar os seus trapinhos aos trapinhos da Lúcia, com o pai.
Dos seus problemas psicológicos e limitações de socialização, eis a responsável pela sua tacanhez.
Do seu desaproveitamento escolar; do mau emprego; do curso de formação profissional com saída de emergência no estágio que faria, do desemprego a prazo anunciado… a culpa era dela.
Da necessidade de controlar os gastos, sem receitas que pudessem ser aplicadas na cozinha dia a dia. Culpada!


Foi então que comecei a compreender, através dos olhos do filho, a Alda.
Dizia-me ele que deveria conhecê-la para poder julgá-la com um conhecimento real e abalizado da pessoa em causa.
Cobras e lagartos poderiam fazer com que a imagem criada fosse a da frialdade do sangue réptil. Contestei os seus argu-mentos com a força dos vários cinzentos que ficam esmagados entre o preto e o branco. Procurei que olhasse a vida como algo pessoal e, de tal modo intransmissível, que não pode ser vivida por mais ninguém, senão por aquele que a vive. Tentei que se visse na pele que vestia: de filho desagradecido, desobrigado e cego de ciúmes por conta de outrem.
Sei que lhe atenuei desgostos, que o fiz virar e espreitar o outro lado da moeda, a qual ele olhava, até aí, obsessivamente, na mesma face. Outras faces de outras moedas o ajudei a voltar. Acho que era parte do que ele buscava em mim, uma espécie de pai-adoptivo-e-substituto.
Bom… Nada disto interessa, a não ser para emoldurar, com um ripado bera, a tela que rudemente ilustro a seguir.

A Alda, percebi mais tarde, não sabia dizer não. Via todos e cada homem como um sexo erecto, satisfatório e inconsequente. Um falo desejoso e confuso, por se tratar de um ser mal-pensante.
Não procurava ninguém. Era apenas vulnerável às insinuantes carícias com as quais qualquer amigo – ou que o não fosse ainda – a tocasse. Ela estremecia nas palavras do desassossego prenunciado e entregava-se, voluptuosa e servil, às ternuras mal tentadas, por entre as quais entrevia a esperança definitiva de achar a mulher diferente que desejava ser, vivendo fora daquele silêncio a que se submetia, por um medo absurdo de ser livre.

No tempo em que trabalhei com ele, o Rómulo, certamente elevara o meu nome e as minhas opiniões ao altar da veneração doméstica, tornando-me num indivíduo familiar a todos naquela casa. Até que o avô se finou e o meu amigo partiu para casa da namorada.
   Um dia, para aí dois anos mais tarde, conhecedor da minha situação de desempregado crónico, ligou-me a combinar um en-contro com a mãe, em cujo emprego iriam admitir, com urgência, uma pessoa para trabalhar por turnos.
Lá fui travar conhecimento com a pessoa em causa e com uma curiosidade tal, que a hipótese de emprego junto dela criava expectativas que me eram estranhas em relação a alguém que nunca vira e com a qual nunca tinha falado.
Que era uma mulher amargurada mas esperançosa. Que dali a poucos dias, quando ela começasse as férias, iríamos à praia os dois. À procura de sol, como os lagartos e, afinal, nem sombra de répteis. Só sangue quente.
Da praia, passámos, a passeios nocturnos e bares intimistas. Daí a outros jardins e recantos cansados de ver sempre os mesmos pares de sombras em busca dos corpos originais.
Nem a todas as tentações resisti, mas fi-lo galhardamente, ante aquelas que pudessem configurar a assunção da mais definitiva esperança que a Alda buscava nas suas sucessivas relações. Dei o que tinha para dar.

De mulher deitada, a mulher vertical, foi transformada num sopro de vento místico, pois não compreendi como poderia ter contribuído para tal mudança.
Desse modo, sem pretensões, lá fomos reconstruindo parcelas de nós mesmos, nas partes do tempo que nos concedíamos.
Então, ela vivia sozinha. Telefonávamos, de vez em quando, a fim de combinar um encontro. Quem chegava primeiro esperava pelo outro.
Por altura das férias, era tempo de recomeçar na praia. Nunca um telefonema falhara ou ficara por responder.

Depois de um desses dias passados entre a maresia e a brisa quente de Agosto, abandonei a casa dela. Nessa sexta-feira com-binou comigo, voltarmos a encontrar-nos naquela praia na se-gunda-feira seguinte.

Cheguei cedo. Como de costume, quando tal acontecia, dei tempo de me convencer que já não viria, antes de resolver ligar para saber o que lhe tinha acontecido.
O facto dela morar sozinha era motivo de preocupação para mim. Se acontecia algum imprevisto, algo nos impedisse de aparecer, telefonávamos, como combináramos. Nessa segunda-feira, não foi o caso. Ela não telefonou… Liguei-lhe. Tocou uma… duas… seis vezes… “Chegou à caixa de correio de…” Desliguei.
Decidi esperar mais algum tempo, já que ficaria na praia, até à hora costumeira para regressar a casa.
Passei uma vista de olhos no jornal gratuito que tinha recolhido na estação e, depois de um cigarro, meti-me no mar refrescante e tranquilo na maré baixa. Voltei, enxuguei-me na toalha e comi uma sandes. Fiz as palavras cruzadas do jornal. Acendi outro cigarro, peguei no telemóvel para ver se tinha alguma mensagem deixada enquanto estivera na água. Não tinha.
De novo liguei para a Alda a pensar, por que raio tocava o telefone até chegar ao voice-mail sem que ela atendesse.
Embrulhado nos meus pensamentos comecei a lembrar-me de lhe ter dito que a fechadura da porta da casa dela era pouco segura… Que, se ocorresse qualquer tipo emergência, ela estava só. Que desde sexta à noite até hoje, tinha tido muito tempo para me comunicar qualquer impedimento que tivesse surgido. Noutras ocasiões ela nunca deixara de ligar.
Tinham-se passado duas horas desde que sabia que ela não apareceria naquele dia. À espera que o comboio partisse, tornei a ligar com resultado idêntico.

Ao chegar a Lisboa, fui à casa dela.
Não me sentia à vontade para me intrometer na sua vontade de não atender o telefone. Éramos dois estados independentes, cujas soberanias se faziam valer interagindo e comunicando em caso de necessidade de aproximação. Nada de invasões e ingerências que pudessem abalar a mútua confiança e a paz sustentadas numa fronteira flexível mas, ainda assim, fronteira, somente atraves-sada pelo acordo recíproco estatuído.
Toquei à campainha. A resposta, porém, foi mais silêncio e sossego. Paz de sepulcro.

Atravessei e desci ruas, entre medos, até chegar à paragem do autocarro que me transportaria até perto de casa.
Não sei se nos meus olhos se lia a agitação e o pânico que já sentia. Tentei racionalizar.
Era isso: por um conjunto de coincidências ela perdera o telemóvel… ou o deixara em casa, esquecido… ou podia não ouvir as chamadas, se tivesse o telemóvel no silêncio… ou estivesse num hospital… Lá ia eu outra vez…
Ter-lhe-iam roubado o telemóvel? Tê-lo-ia perdido? Então e se a tivessem assaltado em casa? Não seria capaz de responder, se se encontrasse maltratada, amarrada ou morta, como se noticiava nos jornais diários em cada edição.
Dizia não mas pensava sim. Era possível! Assim como eram possíveis, uma enormidade de situações todas diferentes para que isto estivesse a acontecer.
Liguei-lhe à noite… Estava morta! Só podia estar morta…

Durante o dia seguinte, entre as várias chamadas que recebi nenhuma era da Alda ou do Rómulo. O mundo girava sem sobres-saltos. Tentei ainda duas vezes, de manhã e à noite.
Será que a tinha ofendido sem que me apercebesse disso, e ela não quisesse agora, simplesmente, falar comigo?
Pus-me a repisar todos os passos daquele último dia passado com ela para trás e para diante… Nada. Escrutinei as palavras ditas, e as outras mais escondidas no meio daquelas, até à espinha do peixe assado do “Ilídio”… E nada. Medi os tons… Procurei ambiguidades… Nada.
Apesar disso, há pessoas cujos limites de compreensão aper-tados lhes dá para imaginar além da intenção do que foi dito e compreendem o que se não quis dizer. Rebusquei tudo outra vez. Nada… nada e… nada.

Na quarta-feira a impaciência tinha dado lugar à exigência de uma explicação.
Na esplanada próximo de casa, liguei-lhe de novo. Não perce-bia como era possível o resultado ser inalterável.
A Alda estava morta nalgum lado… num canto da casa… em qualquer sítio. Eu sei lá onde… Estava morta, pronto. Ponto.
Mas não queria acreditar. Morta com o telemóvel ligado? Era possível. E os filhos? Não teriam tentado, entretanto, falar com a mãe?
Enquanto bebericava o café e sorvia depressa, sem dar por isso, o uísque, escrevi uma mensagem no telemóvel: – “Alda, Não atendes porquê? Se não disseres nada até à noite de hoje ligo ao Rómulo”.
O resto do dia arrastou a lentidão do silêncio até o prazo do meu ultimato expirar.
Mais uma vez o telemóvel vibrou, dançando a deslizar sobre tampo da secretária, ao lado do computador. Atendi.
Do outro lado a voz da “defunta” sobressaltou-me tanto como se ressuscitada naquele instante. Que nunca conseguira atender o telefone antes de eu desligar e não tinha saldo para poder ligar-me, nem tivera dinheiro para ir à praia, quanto mais para fazer o carregamento do telefone. Só agora, conseguira coragem para pe-dir a uma amiga que lhe fizesse o favor de o carregar para falar comigo.

Enfim. Há sempre gente, como eu, que, não tendo onde cair morta, o que gosta mesmo é de estragar aos outros os velórios precipitados na agenda do dia seguinte.

                                                                                                           



Lisboa, 26 de Agosto de 2010
João Rodrigues

sábado, 25 de setembro de 2010

Regresso da Póvoa

Imagem extraída do blogue: SARRABISCOS

Regresso da Póvoa


No emaranhado raciocínio, que nascia do mistério da tua pre-sença, ali, na plataforma da estação ferroviária do fim-do-mundo, abrias clareiras a golpes de lucidez, povoando de palavras mágicas o papel vazio.

Não se pode dizer que te tenha conhecido na intimidade. De ti, conheci no teu rosto o traço que um deus-artista teimou pintar.

Vi como usavas uma saia esvoaçante e leve assemelhando-te a uma borboleta que te namorou quando passaste.
O astro-rei esbraseava a tarde e pousava no teu cabelo, agi-tado por suspiros de brisa, os seus dedos de ouro, acariciando-o ternamente até fulgir.
Ainda recordo o aroma doce a canela que desprendido da tua pele se misturava na fragrância quente que vinha dos canteiros ajardinados da estação dos caminhos-de-ferro.

A Póvoa deixava de existir, ali, contra a parede que anunciava o fim da linha.

Apesar de tudo, para mim, tratava-se do princípio da jornada de regresso à cidade grande… ao Tejo!

Deixara de existir, disse eu. Trazia apenas, pendurado no fio da memória, como contas de um colar desfeito; o casino, a praia, a estação e… o tribunal onde tinha sido conduzido por dois chuis que, em vão, procuravam não parecer o que eram.

Ah!... e tu. Sim, tu estavas lá, tinhas ocupado o espaço de tudo o resto e deixaras-me somente uma nesga de olhos para te absorver e levar a Lisboa.

– Já foste a Lisboa? – perguntei.
Talvez tenha sido o momento em que decidi falar que esco-lheste para te sentares no banco a meu lado e olhando rapi-damente, de soslaio, mediste mais um palmo de banco para nos distanciar. Nada mais… e era tanto. Foi então que não cheguei a saber o som da minha voz. Não cheguei a saber se conhecias Lisboa.
Não cheguei…, e já partia.

Mas, foi porque transpareceste que te desnudei a alma num repente em que deixaste escapar da tua existência ternuras ner-vosas com luares malditos e canções de vento.
Em caracteres largos e firmes centraste no cume da página:

Pesadelo


… De onde eu saíra, pensei. E tu penetravas nele a fios de tinta, tecias versos que arrimavas com rimas soltas, livres, insensatas a porem febre e fogo nos teus olhos. Não conseguias parar. Estive quase… quase, a travar-te a marcha no papel, gritando que estava ali a espreitar dentro de ti, descuidada.

Talvez tivesse gritado mesmo, pensei quando te viraste para mim.

Fixaste-me dois segundos sem me veres. Acordaste e, de magia interrompida, tapaste a folha do teu “Pesadelo” para que não a devassasse a intrusão do meu olhar vadio.

Não voltei a “falar-te” da vida nas terras do Tejo, ou da força dos homens que por lá vivem. Talvez porque me faltou a força, talvez a vida me falhasse… Talvez fosses só mais uma lacuna num qualquer dos meus rascunhos sempre inacabados.

Neste emaranhado raciocínio abriste clareiras de lucidez, fechaste o caderno, ergueste-te e, resoluta, pairaste pela plata-forma do fim-do-mundo para tomar o comboio, onde me abando-naste a povoar de loucura o meu papel vazio.

Póvoa de Varzim-Lisboa,
Junho de 1996
João Rodrigues   

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Ainda falam comigo

Imagem extraída do blogue: OLHOS ABERTOS

Ainda falam comigo


A cidade tem destas coisas tecidas nas gotas do tempo. Endoi-da-nos para além do vórtice da loucura que quotidianamente nos devora.

No fim são, apenas, fios de memória: um passo, um gesto, outro passo; uma cor que se abre em luz e uma sombra além dela; uma chatice qualquer… uma dor que deixa cicatrizes; um espaço…, um vazio; um copo que tarda em vazar, calor, carícia, cumplicidade; bandeiras de vento, conspiração e sonho; sons, rostos, restos de tudo e tudo enovelado cá dentro, à espera, talvez, da ponta puxada por um olhar subversivo.
                                                                        Talvez…


Passavam caras e não as via. Nem os corpos, ou as vestes postas neles. Mas os rostos que por mim passavam estavam, também eles, enredomados num acrílico translúcido.

Assim, deveria eu estar enclausurado, tal como tantos, por trás de sucessivos não não não não… …, cansados de “mendigar” trabalho.

Igualmente, experimentariam a sensação de afogamento bran-do em suor, esbracejariam por entre a turba, afastando a insani-dade com golpes de pensamento entre as batidas furiosas na bigorna de silêncio do mundo que trazia nas têmporas.

A pressa que levava, haviam horas, pesava em mim agora e abrandei a caminhada.

Vã mais uma vez diga-se. Mais uma vez confundira perspectiva de emprego com esperança, promessas ilusórias com realidade. Um soluço sufocado explodia mudo no meu peito a revoltar-se pela aridez dos dias, enquanto os meus passos, guiados por qualquer mecanismo dissociado da razão, pareciam arrastar, como pesadas grilhetas, as lembranças onde pairavam, confusas, as conversas de hoje a conduzirem-me a outro beco sem saída semelhante a tantos de onde, nos dias anteriores, retrocedera.

E eu que só queria uma ruela menos estreita onde desembocar no remanso da palavra SIM.


Toda a gente, num bailado estranho, entrava pela língua de degraus que levavam à goela funda do Metropolitano e de lá saía regurgitada em cíclicos vómitos calados.

Os olhos que passavam por mim não me viam. Fixos em frente ou focados no chão, seguiam em ziguezagues dúbios, cada par o seu destino. Bichos cegos carambolando pelos túneis em busca de uma saída. Pareciam vir direitos a mim para, de repente, serem repelidos nas mais variadas direcções.


De súbito acordei para aqueles olhos que já de longe agarraram os meus e não os largaram.

Pareciam cantar hinos, ou coisa assim, os olhos dela. Um canto que trazia o rumor do mar, o calor do sol, o toque aveludado do luar. Mas não a paz. Vinham para mim dentro dos meus com escon-juros de tristezas, e torrentes de vida a retirarem-nos aos dois daquele lugar.

O nosso destino, quem o saberia dizer? Apenas que na estação onde ela saísse eu sairia. E ela iria sair na estação em que eu saísse também.

Assim, de olhos dados, lá fomos no comboio para fim incerto. Em boa verdade, como são todos os fins.


Perguntei-me se a conheceria de algum lugar remoto, daqueles lugares secretos que o meu tempo ainda guarda. E logo os meus olhos questionaram os seus: – Conheço-te? Respondeu-me meiga a voz dos seus: – Parvo! Nunca nos vimos antes. Talvez já nos tivéssemos olhado mas nunca nos vimos. E estou agradada por te ver hoje e aqui.

Os nossos olhos tocavam-se, cariciosos. Impeliam-nos a deleites e apaziguamentos da mente, a sussurros e audácias novas, conjun-ção de nervos tangidos pelo espírito e trazidos à flor da pele.

Quando saímos, tal como estava escrito, na plataforma mais ninguém existia e, apesar disso, parecia-me que o mundo inteiro espiava, aceso de sordidez, os nossos gestos e as falas indiscretas dos olhares que trocávamos.

Estamos quase a cruzarmo-nos.
Fitos nos meus, os olhos dela, já não se calam. Procuram res-postas que, perdido, não acho. Soçobrarei, de uma maneira ou de outra, quando a não encontrar em reminiscência fugidia ou, final-mente, a aceitar como a desconhecida que me desnudou a alma e fez fremir o corpo, numa estação do “metro”, apenas ao olhar com rubro despudor a minha alma tormentosa.

Percorremos, ainda, os poucos passos que nos separam.
Separam… ?

Inquietos, talvez momentaneamente cegos, os meus olhos es-quadrinham acervos da memória, revirando trôpegos e vorazes, em atropelo e sobressalto, pingo a pingo qualquer ínfima lembrança daquela face descontraída e bela que avança, cada vez mais próxima, para passar por mim, atravessar a minha vida e deixar-me atordoado, mais seco, mais frio e  mais só.

Passamos um pelo outro sem percebermos o que nos afasta agora, quando tendo-nos visto uma única vez, deixar que um rumo determinado e fugaz ou, pelo contrário, uma prisão cavada no preconceito rochoso e enganos de mutismo louco, impeçam os nossos olhos de se tocarem em paixão, numa derradeira tentativa de sobreviver neste vácuo em que teimosamente existimos.

Espera! – Quero eu gritar.
Mas o que sai é a voz dos meus olhos mudos e implorativos: – Por favor deixa que eu te conheça. Agora que já te olhei, não vás embora de mim.




Ficou a aflorar-lhe um ténue sorriso enquanto o seu olhar di-zia: – É pena. Tenho realmente muita pena por não me veres pois se me tivesses visto compreenderias o afago com que te deleito, a ternura que é dádiva da minha solidão e mortalha do meu silêncio.

A distância entre ambos desapareceu com os olhos a tocarem-se ainda numa despedida breve:
Adeus. – Disseram os olhos dela.
Estúpido!!! – Gritaram os meus.

Abrandando ainda mais a marcha, achei-me entre zombies fu-riosos a patearem o átrio das bilheteiras, e tinha nos meus os seus olhos.

Parei a voltar-me para trás e vi que ela se virava também. Sorriu de novo e partiu. Rodei e segui os outros zombies.

Foi talvez  uma visão que se foi embora, ou fui embora dela.



Os anos lançados uns sobre os outros, como estes sacos de terra que agora largo dos ombros, ameigaram aqueles olhos que, ainda, de tempos a tempos, falam secretamente com os meus.


Lisboa, Janeiro de 2002
25 de Abril de 2009
João Rodrigues

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O "Morto"

Imagem extraída do blogue: NÃO DUVIDO
                   



O “Morto”

O amigo mais morto que já tive




O Morto… lá está ele. Parece que ainda o vejo, revestido da serenidade que, parece, viveu tudo o que havia para viver e deixou, tranquilo, o legado da concessão de, finalmente, o ho-menagearem postumamente, com vozes surdas e subtis reve-rências àquele que respeitavam pelo modo como atravessara, até aí, a existência brilhante, cravejada de silêncios tão vastos quanto significativos.

Parece que o vejo, mas não. Há bem mais de trinta anos que deixei de o ver. Será que passei por ele sem o conhecer? Será que morreu?

Cruzes… canhoto! O Diabo seja cego para ler isto que, bem pode ter bom ouvido, da minha boca não o escutará certamente.

Chamava-se – ou chama? – José Carlos, Zeca para alguns amigos e, até os pais, apesar do espírito apático do rapaz, não lhe dese-jando antecipar o fim precoce por tão pouco, o tratavam por Zeca, em vez de “Morto” ou os nomes de baptismo. Não era, porém, exacta a alcunha, como em geral não o são as alcunhas e “Zeca” não lhe ia mal de todo.

Quando o encontrei na Escola Industrial, o “Morto” já assim era por todos conhecido, na “Marquês” e em todo o bairro de Alcân-tara, principalmente entre os jovens, que na altura se juntavam fora das escolas, em locais que elegiam, como se tratassem das sedes de grupos exclusivos, para combinarem actividades, encon-tros, namoros e acharem desencantos, paixões e lutas que (os) iam construindo para um amanhã em tudo parecido com um hoje a necessitar de outros jovens construtores de um outro amanhã mais igual ao futuro que então desejámos.

Mas, ia dizendo, o rapaz era pouco dado a ideias mórbidas e funestos desígnios, antes procurava, sensato, falar o essencial, não dando confiança a quem a não merecesse. O Morto impunha-se e fazia-se respeitar, como um oráculo, quando lhe bebiam, sôfregos, as raras palavras que desenhavam com limpidez e brevidade um pensamento laboriosamente construído.

Contribuía para isto, e para o que demais há-de vir, o ar mais “maduro” que tinha. O seu rosto moreno exibia uma barba sempre feita que fazia inveja a alguns dos mais velhos do grupo e lhe granjeava assento privilegiado entre eles, media mais uns dez centímetros que eu (tal como me lembro), apesar de não chegar a ser ano e meio mais velho e um corpo atlético e proporcionado capaz de desmentir, no campo de futebol, a inacção traduzida pelas vozes de fora das linhas: “anda Morto!”, “corre Morto!”. E o Morto andava, posicionando-se com acurada visão do jogo, corria, passava e fintava, centrava e rematava com força e direcção usando com mestria ambos os pés, arrancando exclamações de legítima admiração como a um artista, como os dos cromos da bola que saíam a embrulhar rebuçados, se tratasse.

Que se tenha saudades do Morto, como todos sabem, é natural. Que se escreva um epitáfio a propósito do Morto é igualmente plausível. Mas, recordá-lo, é uma delícia que me transporta em busca de recantos da minha juventude, há muito enterrados.

Se alguém quiser pensar que o Morto só o era de algum modo em particular, como por exemplo na área do amor, queira pensar de novo à luz do que vos conto.

Parecia, talvez, estar ausente ou, que penúmbreo manto o recolhia dos olhares acerados de rivalidade e inveja daqueles que não compreendiam a felicidade com que acompanhava a sua na-morada. Uma jovem, das mais bonitas do grupo, consistia na metade límpida e vivaz da personalidade intrigante e misteriosa do Morto.

Frequentemente juntávamo-nos todos para serões de animada tertúlia e canto contestatário quando ele, que trazia a viola e concentrado a dedilhava, e que não cantava de acordo com os do-tes de trovador que pensava possuir, se calava depois de alguma insistência nossa. Guardo, na minha esperança de uma utopia pró-pria da juventude, a memória desses momentos, para que se não percam os valores da paz, da amizade e solidariedade, da igual-dade e liberdade, preenchidos pela satisfação de todas as neces-sidades humanas.


Dei-lhe a minha amizade e sei que ele a acolheu e retribuiu, com a parcimónia característica de um defunto por vezes, noutras ocasiões, mais efusivo, estendia um sorriso a lembrar a vida que existia nele.

Parti seguindo o rumo que escolhi, fazendo-o. Não lhe cheguei a dizer adeus.

Oxalá não esteja morto o “Morto”.


Lisboa, 4 de Abril de 2009
João Rodrigues

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A cega

A cega



Já nem sei quando aconteceu ou, até, se aconteceu. Sei que, desde então, ando perdido de mim por estar perdido dela. E, no entanto, é ela quem me preenche os dias, as horas, os instantes todos em que me acho vivo.

São os meus músculos, exigentes, que se rebelam pela sua ausência ao acordar. Parece estar moldada nos lençóis quentes da cama abandonada de onde se evola o perfume do vazio. São os meus nervos tangidos pelas unhas frias do vento a despertarem-me para a cidade em desatino, que corre em todas as direcções, como um rio louco, à procura de um destino. São, também, os meus olhos enganosos que teimam em esquadrinhar em redor, perto e longe, tudo o que mexe, não vá ela passar despercebida.
E eu, sem um fim preciso, procurava perceber que raio de coisa era aquela que me dominava as sensações, as aprisionava e, com primores torturantes, me devorava a existência que até ali experimentara sem transtorno. Porque razão, sórdida, louca ou apaixonada, pensava o que pensava e fazia o que fazia, sempre amarrado à arrebatadora imagem daquele encontro acontecido há uns dias atrás.

Não sei se é fácil alguém camuflar-se nesta paisagem mutante sem se perder. Ainda por cima, quem se esconda dos seus próprios olhos, desencontrada de outros caminhos que não sejam aqueles que sempre a sua bengala pisa tacteante, com a segurança do conhecimento feito da repetição sem fim.

Em boa verdade, reencontro-a a cada momento, na lembrança de um dia de trabalho mais que esgotante. Esgotado nas cores cinzentas de frio e promessas de chuva, tal como no dia em que estivemos juntos pela primeira e única vez.

Dia como eu, exaurido de forças e vontade de iluminar a vida, farto de rolar sobre si mesmo. Dera-o por acabado depois de sair da tipografia. Cansado da regreta e componedor, dos caixotins, dos tipos e da galé. Do prelo, das provas… de tudo.
Cá fora, com dois camaradas, linotipista um, impressor o outro, foi só atravessar a rua para entrar na pastelaria onde todos os dias nos dávamos ao abandono de uma cerveja bem fresca, um pastel de bacalhau ou uma sandes de presunto, conforme o apetite, e trincávamos, entre dentes, a desapetecida história do dia de cada um, que era a história da vida passada na oficina.

Mas deixem que eu conte. Era sexta-feira, …

Naquele dia, despedidos uns dos outros, calcorreei, as artérias, donde a minha cidade sangrava gotas como eu. Depois a chuva e, então, a corrida em busca de abrigo, até que amainasse e me permitisse chegar à paragem de autocarro.
 Já na Avenida da Liberdade entrei, a custo, na carreira 9 que vinha dos Caminhos de Ferro, a qual, chegada ali, vinha já a reben-tar pelas costuras. Hora de ponta, saída de empregos e escolas, falta de transportes suficientes mais tempo frio e chuvoso, era no que resultava.

Amontoados, comprimidos desde a entrada, à frente, até à retaguarda, numa amálgama que se tornava bafienta à medida que, com as janelas do carro todas fechadas, o calor dos corpos e a humidade de roupas para as baixas temperaturas desses dias, e malas e guarda-chuvas molhados, se ia homogeneizando.
O autocarro, lentamente, avançava agora com esforço inaudito entre a Avenida e o Largo do Rato, certamente já cansado da subi-da desde os Restauradores até à entrada da Alexandre Herculano. Resfolegando num pára arranca interminável que se prolongaria até à Saraiva de Carvalho, onde eu iria descer.

Felizes daqueles que puderam encontrar um lugar sentado, podendo, pelo menos, escapar ao aperto e não recear tanto pelas carteiras.

Ao pensar assim, pousei os olhos numa mulher que se sentava num dos bancos reservados e vi o quanto poderia ser cruel uma observação deste tipo se lhe fosse aplicada. O meu cinismo esvaiu--se e não consegui mais deixar de olhá-la.

Não era a primeira vez que a via ao fazer este trajecto. Era uma mulher aí para a minha idade, muito bonita.
Muito direita e quieta, as mãos pousadas uma ao lado da outra, sobre a mala que presa a tiracolo descansava sobre as pernas, faziam de vez em quando, curtos movimentos apressados, nervo-sos, para regressarem depois ao sossego do colo. Os seus olhos de um azul líquido, do mesmo modo, a espaços, abriam e fechavam e, rapidamente, deslocavam-se como se levassem com eles, para onde quer que se desviassem, o mesmo ponto fixado.
Do interior da mala semiaberta assomava uma bengala branca dobrada sobre si mesma pelas sucessivas articulações como uma fita métrica de marceneiro.

 Na paragem seguinte, perto da Rua Braancamp, uma desloca-ção ligeira de maré tomou conta dos passageiros. Saíram uns poucos, entraram mais e eu fui atirado como vaga mansa sobre a muralha que eram as pessoas sentadas perto. Fiquei quase encos-tado à mulher cega.

Com um meneio súbito de cabeça acompanhando a direcção que tomavam os olhos, percebi que ela soube da minha proximidade… da proximidade de alguém. As suas mãos brincaram inquietas no fecho da mala, e os seus olhos perseguiam as sensações recebidas em redor.
Quase instintivamente encolhi-me. O braço esquerdo roçara brando em mim quando as suas mãos procuraram algo no interior da mala preta.

Num desses soluços de trânsito compacto, e ao sair da para-gem, próxima da ruína que é agora o velho Cinema Paris, a tra-vagem abrupta fez com que os passageiros fossem lançados uns de encontro aos outros e a mulher cega, que se tinha levantado para se aproximar da saída, quase caísse sobre mim. Agarrei-a impe-dindo-o. Devolvi-a ao lugar tentando ser tão cauteloso quanto possível para não a magoar.
– Ainda temos mais uma paragem antes do semáforo… onde quase sempre paramos. Quando chegarmos ajudo-te a sair… sai aqui muita gente… E eu também fico nessa paragem – disse eu.

Do gesto, algo protector, de a colocar no assento, ficou a minha mão pousada sobre o seu ombro, e na minha mão um leve tremor vindo da carne quente sob a camisola de lã. Os meus dedos, numa carícia hesitante, ora tocavam e soltavam ora a seguravam de forma impudica.
A vibração dela repercutiu-se em mim e fui apossado por uma descarga quase sideral, misto de desejo e prazer lascivo, de encanto e tentação, que se desvaneceu com a chegada ao fim do nosso trajecto.
Agarrei o braço dela e, levantando-a com suavidade, levei-a para o frio exterior. Abanei, sem saber hoje, se por causa da frialdade do tempo se do seio cálido, que me entrava nos dedos e percorria até à medula. Permaneci encostado a ela, anestesiado. Procurava o que dizer e nada saía. Parecia que tudo à volta era um imenso ruído de fundo que me toldava o pensamento.

Chegou a altura de deixá-la entregue a si própria, à bengala branca e à sua vida, talvez menos colorida que a minha, mas com outros sabores e cheiros, talvez mais apetecíveis, mais palpáveis e felizes que a minha entrega rotineira ao serão quotidiano.

– Não quer ir tomar uma bica comigo aqui ao “Canas”?
Sem saber de onde me nascia a coragem para o atrevimento, se vinha do corpo enleante daquela mulher que ainda tinha junto ao meu, ou duma vontade inconsciente que impulsionava o meu sangue, insisti no meio do silêncio dela que mal a ouvi dizer:
– Já é tarde… hoje… Tenho que ir para casa…
– Pode ser no “Canas” ou neste aqui da esquina… – supliquei – são só dez minutos…

Acedeu. Não como quem se derrota ou abandona, mas antes como quem resolveu e teve a sorte da vitória, li-lhe no sorriso enigmático e feliz.

Quem cedia era eu… à circunstância de a ter quase colada a mim, ao contacto do meu braço com os seios dela, à satisfação de a conduzir e sentir-me cada vez mais excitado.
Ela sentia e retribuía com os mesmos sinais. Quando me aprisionou a mão de encontro ao peito e a acariciei, com a au-dácia que afinal tinha nascido nela, suavemente, os meus dedos voltearam sobre o mamilo que, erecto, apertei caricioso.
     
Ficámos de mãos dadas, coladas nos nossos vultos. E foi assim que no “Café Canas” nos viram entrar, muito juntos, com indisfar-çável e muda satisfação. Fomo-nos sentar, ao lado um do outro, a uma mesa mais recatada na sala do fundo.

Se ela pudesse ver-me quando me olhava que pensaria? Que veria na minha cara, nos meus olhos, nos meus gestos? Talvez nem tivesse saído do autocarro comigo. Talvez anuísse a um café… um encontro fortuito… um conhecimento sem quaisquer consequên-cias. Talvez não. Talvez… tanta dúvida me assaltava.

Renascia ao olhá-la. De tez suave e olhos claros que pareciam ver, o nariz pequeno e maçãs do rosto ligeiramente salientes, boca talhada a cinzel harmonioso e sangue, no polposo lábio inferior… deliciava-me. Tomava-lhe o pulso medindo-lhe no semblante as reacções à conversa e aos afagos subtis que nos permitíamos.
Tinha uma aparência mais jovem do que a idade revelada. Quase mais dois anos que eu.

O cabelo curto era como um desafio irresistível para os meus dedos e, acariciando-o percebi um fogo intenso de luxúria aco-metê-la. Via-lhe na face um esgar de prazer a acompanhar o movimento lento da coluna vertebral a endireitar-se, como um felino.

Com ambas as mãos percorreu-me a cara a absorver e rede-senhar a minha feição, detendo os dedos a alisar a barba que não tinha cortado nesse dia.

Apetecia-me embriagar no cheiro da sua pele, apetecia-me tê-la em mim e, apesar de todos os indícios ainda receava atemorizá-la e, qual pássaro assustadiço, voasse irremediavelmente para longe.
Eu queria beijá-la e refreava-me, queria tocá-la e coibia-me.

Telegraficamente e algo telepático falámos o essencial e o pue-ril, arriscando adivinhar o que não era expresso nas palavras ditas.

– Chamo-me … – disse eu.
– E eu, …

Nomes próprios, só. Nada a complicar ou obstruir o caminho que encetávamos.


– Moro aqui, em Campo de Ourique. Lá para baixo, ao pé da igreja de Santa Isabel – disse ela.
Eu também… já ali, ao fundo da Ferreira Borges.

Ficámos a saber coisas vagas. Importantes acerca de nós.


– Este tempo triste …
– É bom estar contigo, aqui.
– Amanhã gostava de ver-te.
– Amanhã vou estar feliz, mesmo que não veja…

Que importa, que me lembre ou não, quem disse o quê. É perfeitamente arbitrário, no encontro de palavras mais que perfeito.

Quando saímos dali, a noite tinha-se fechado. Acompanhei-a a caminho de Santa Isabel e, ou porque a Santa não gostasse, com ciúmes de um milagre que anunciávamos, ou pelo contrário, quisesse ajudar ao milagre, que um poderia ver e outro não, mas ambos sentir, fez tombar naquela altura – presunção minha que, não acredito em Santa Bárbara – a maior carga de água, tocada a vento, que os céus podiam conter.
Rapidamente, despi o blusão de bombazina e cobri-a com ele, abraçando-a e encostando-a a mim, enquanto, com o passo apres-sado, procurava algum sítio onde nos recolhermos do temporal. E eis que o milagre se materializava, num prédio antigo, uma porta que não estava fechada.

Precipitados, na escuridão do abrigo inesperado, enlaçámo-nos beijando-nos com agitação impaciente e voraz. As minhas mãos e a minha boca desejosas, descobriam novos sentidos, nas carícias que a percorreram, ateando a paixão no seu corpo, no meu, incandescente.

 Aninhado nela, em êxtase delirante, senti que implodimos desafiando a tempestade até às profunduras do nosso ser.

Saímos depois pacificados e silenciosos como o tempo. E eu, que já me sentira seguro de mim, estava agora "às aranhas", sem saber o que dizer, como encontrar um epílogo que nos permitisse, voltarmos a ser quem éramos antes ou, tentarmos ser juntos quem seríamos depois deste dia.


Era tarde, pensei.

– Diz aos teus pais que encontraste o teu primo – disse-lhe sorrindo – ou… um amigo, amiga, alguém que não encontres há muito tempo e te fez demorar…


Mas o silêncio não ficara desfeito. Tentei:
– Vemo-nos amanhã?
– Sim… Agora vou sozinha… Todos os dias faço este caminho à mesma hora.
Beijámo-nos como se revisitássemos o inesperado ou nos despe-díssemos para sempre.

Afinal, sei quando aconteceu… se aconteceu. Sei que, desde então, ando perdido de mim por estar perdido dela… no entanto, é ela quem me preenche obsessivamente os dias, as horas, os instantes todos em que me acho vivo.

Lisboa, 1 de Janeiro de 2010
João Rodrigues