quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O "Morto"

Imagem extraída do blogue: NÃO DUVIDO
                   



O “Morto”

O amigo mais morto que já tive




O Morto… lá está ele. Parece que ainda o vejo, revestido da serenidade que, parece, viveu tudo o que havia para viver e deixou, tranquilo, o legado da concessão de, finalmente, o ho-menagearem postumamente, com vozes surdas e subtis reve-rências àquele que respeitavam pelo modo como atravessara, até aí, a existência brilhante, cravejada de silêncios tão vastos quanto significativos.

Parece que o vejo, mas não. Há bem mais de trinta anos que deixei de o ver. Será que passei por ele sem o conhecer? Será que morreu?

Cruzes… canhoto! O Diabo seja cego para ler isto que, bem pode ter bom ouvido, da minha boca não o escutará certamente.

Chamava-se – ou chama? – José Carlos, Zeca para alguns amigos e, até os pais, apesar do espírito apático do rapaz, não lhe dese-jando antecipar o fim precoce por tão pouco, o tratavam por Zeca, em vez de “Morto” ou os nomes de baptismo. Não era, porém, exacta a alcunha, como em geral não o são as alcunhas e “Zeca” não lhe ia mal de todo.

Quando o encontrei na Escola Industrial, o “Morto” já assim era por todos conhecido, na “Marquês” e em todo o bairro de Alcân-tara, principalmente entre os jovens, que na altura se juntavam fora das escolas, em locais que elegiam, como se tratassem das sedes de grupos exclusivos, para combinarem actividades, encon-tros, namoros e acharem desencantos, paixões e lutas que (os) iam construindo para um amanhã em tudo parecido com um hoje a necessitar de outros jovens construtores de um outro amanhã mais igual ao futuro que então desejámos.

Mas, ia dizendo, o rapaz era pouco dado a ideias mórbidas e funestos desígnios, antes procurava, sensato, falar o essencial, não dando confiança a quem a não merecesse. O Morto impunha-se e fazia-se respeitar, como um oráculo, quando lhe bebiam, sôfregos, as raras palavras que desenhavam com limpidez e brevidade um pensamento laboriosamente construído.

Contribuía para isto, e para o que demais há-de vir, o ar mais “maduro” que tinha. O seu rosto moreno exibia uma barba sempre feita que fazia inveja a alguns dos mais velhos do grupo e lhe granjeava assento privilegiado entre eles, media mais uns dez centímetros que eu (tal como me lembro), apesar de não chegar a ser ano e meio mais velho e um corpo atlético e proporcionado capaz de desmentir, no campo de futebol, a inacção traduzida pelas vozes de fora das linhas: “anda Morto!”, “corre Morto!”. E o Morto andava, posicionando-se com acurada visão do jogo, corria, passava e fintava, centrava e rematava com força e direcção usando com mestria ambos os pés, arrancando exclamações de legítima admiração como a um artista, como os dos cromos da bola que saíam a embrulhar rebuçados, se tratasse.

Que se tenha saudades do Morto, como todos sabem, é natural. Que se escreva um epitáfio a propósito do Morto é igualmente plausível. Mas, recordá-lo, é uma delícia que me transporta em busca de recantos da minha juventude, há muito enterrados.

Se alguém quiser pensar que o Morto só o era de algum modo em particular, como por exemplo na área do amor, queira pensar de novo à luz do que vos conto.

Parecia, talvez, estar ausente ou, que penúmbreo manto o recolhia dos olhares acerados de rivalidade e inveja daqueles que não compreendiam a felicidade com que acompanhava a sua na-morada. Uma jovem, das mais bonitas do grupo, consistia na metade límpida e vivaz da personalidade intrigante e misteriosa do Morto.

Frequentemente juntávamo-nos todos para serões de animada tertúlia e canto contestatário quando ele, que trazia a viola e concentrado a dedilhava, e que não cantava de acordo com os do-tes de trovador que pensava possuir, se calava depois de alguma insistência nossa. Guardo, na minha esperança de uma utopia pró-pria da juventude, a memória desses momentos, para que se não percam os valores da paz, da amizade e solidariedade, da igual-dade e liberdade, preenchidos pela satisfação de todas as neces-sidades humanas.


Dei-lhe a minha amizade e sei que ele a acolheu e retribuiu, com a parcimónia característica de um defunto por vezes, noutras ocasiões, mais efusivo, estendia um sorriso a lembrar a vida que existia nele.

Parti seguindo o rumo que escolhi, fazendo-o. Não lhe cheguei a dizer adeus.

Oxalá não esteja morto o “Morto”.


Lisboa, 4 de Abril de 2009
João Rodrigues

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