sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O "Pirilau"

O “Pirilau”

Era naquele movimentado cruzamento de ruas em que, parecia, toda a cidade se cruzava, que funcionava, por simplesmente acontecer, o ponto de encontro da freguesia, todas as manhãs.

Quem alguém quisesse encontrar, era para o Cruza-mento que se dirigia. Se a pessoa buscada não se encontrasse no ponto de encontro, era sempre possível – como num balcão de informações e sem grande burocracia ou obrigação de preenchimento de formulários – pergun-tar, em troca de um bom dia, a um conhecido que de certeza lá estaria, pela pessoa em questão.
Em último recurso poderia sempre saber o que pretendia ou, até o que não queria saber, se se dirigisse ao “Pirilau”.

Este cruzamento era verdadeiramente o centro da vida da comunidade, o coração pulsante alimentado por essas duas artérias que ali confluíam. E cruzavam-se como ma-deiros cravados à vida das suas gentes.
Aí, e em vias contíguas, era sítio de cafés restaurantes e casas de pasto, supermercados, sapatarias e sapateiros, lojas de roupas e alfaiates, de bugigangas louças e tapeça-rias, de ferragens, artigos eléctricos e ferramentas, depen-dências bancárias ourivesarias e cabeleireiro, lojas de animais e produtos naturais, de chineses indianos e paquis-taneses, escolas primárias, farmácias, hospital militar e centro de saúde civil, de paragens de autocarros e de carros eléctricos, de igreja paroquial católica e igreja evan-gélica protestante… Enfim, sem ser exaustivo, existia tudo aquilo que já não cabia no espaço nem na competência do mercado municipal que estava logo ali.

Para que o mundo girasse e fluísse ordeira e satisfa-toriamente, o Pirilau, dada a inexistência de semáforos ou polícia sinaleiro, colocava-se no meio da encruzilhada, apitando desalmado, erguendo as mãos abertas e esten-dendo os braços para a esquerda ou direita, numa dança de equilíbrio precário rodando sobre um dos pés, conse-guia, sem a ajuda de ninguém, organizar a maior confusão rodoviária, com coro de buzinadelas a pontuar a exibição.

O centro do mundo. Um mundo pequeno talvez, todavia, um mundo com seu centro.

Volta não volta este era sacudido por um cataclismo em forma de gente.
Um metro e quase sessenta de altura, magro como a fome que trazia amontoada ao longo de quarenta e seis anos de existência, o Pirilau – Assim era conhecido o Augusto Simão – rindo, fazia tremer o Cruzamento e abalar tudo o que era gente naquele local, até que as forças da ordem o detivessem mais uma vez.

O Pirilau como os profissionais da venda ambulante, que saíram da rua para o interior do novo mercado municipal, transferira com eles, a actividade profissional de carregador de caixas e sacos de produtos para a venda.
Era remunerado com alguma caixa de morangos ou kiwis, um saco de laranjas, limões, meloas, ou qualquer outra espécie que pudesse vender no seu périplo pelas “capelinhas” onde não estivesse proibido de entrar, quando não recebia umas moedas em troca do carrego realizado. Procurava então, à porta de cafés, restaurantes e afins, os clientes, conhecidos ou não, ou mesmo no meio da rua, mostrando o seu artigo como um cigano: “– Já viu a categoria deste relógio?... venha cá…! É um rólecsi! Vendo barato senhôri… Só dez érios… mas por ser pra si, faço-lhe a cinco. Na quéri?... Átão quanto é que dá?”
Parecia ser movido por uma energia renovável e inesgo-tável. Não tinha parança. Mesmo quando nas escassas ocasiões em que conversava comigo, estava a trabalhar. Com um olho no burro e outro no cigano, enquanto contava entusiasmado a sua aventura da noite passada entre o Cruzamento e a esquadra da polícia, mexia-se apoiado ora num pé ora noutro, rodando a cabeça para encontrar alguém que, como já sabemos, ali sempre era possível encontrar, para, abrindo o saco de plástico, revelar os “dois quilos duzentas e sessenta de carapau fesquinho qu´eu fui ali pesar ó senhor António… vão mesmo a calhar consigo pró o almoço e só paga um quilo”, ou com passos rápidos abordar um “amigo” que lhe “arranjasse” um cigarro ou lhe pagasse uma taça de vinho.
E este era, sem dúvida, um dos combustíveis do Pirilau. E ele abastecia com a regularidade que lhe permitiam os proventos da manhã, ou a multiplicação do número de “voluntários” abordados para lhe pagarem um copo.

Quando lhe aparecia, o Pirilau fazia qualquer gancho. Desde servente de obras a carregador de bilhas de gás ao domicilio, ou compras e recados vários em troca de recompensa. Não raro, vi alguma velhinha entrar na Canoa para deixar pago “mais um pénalte para o Pirilau”.

Dizem que tinha maus fígados e, de facto, ou não era isca de qualidade que aguentasse o tempero, ou era por beber demais para o corpo que tinha, que o fel lhe subia à cabeça.
Por vezes, sentado na soleira da porta de um prédio por ali, de preferência uma casa comercial onde houvesse gente reunida, esgravatando com um pau, qualquer instru-mento, mesmo com as unhas como garras, arrancava uma, depois outra e mais das pedras calcárias do passeio e, com a terra à vista no buraco aberto, fazia sobre ela uma reza ecológica, protestando e vociferando contra o poder e a inacção dos seres humanos que viam e permi-tiam que o ser vivo que era a terra fosse sepultado debaixo de pedras e alcatrão, impedida de respirar, de beber as águas que do Céu lhe eram mandadas para que se desse-dentasse, alimentasse e procriasse, de dar a sua quota parte de natureza verde para satisfação dos animais, dos Homens, e dos vermes.
À medida que a oração dava frutos visíveis nele e nas reclamações dos comerciantes, pela má vizinhança produ-zida e, a terra à mostra permanecia como cavidade de gengiva exangue, a sua voz ia subindo o tom ameaçador, injuriando quem estava, quem passava e os que ainda haviam de chegar.
Invariavelmente, acabava com a polícia a detê-lo, por ter apedrejado as montras dos ofendidos comerciantes e pôr em risco ao redor, os automóveis e a integridade física de quem andava naquele lugar, com as suas pedradas cegas e sem direcção que, por mistério, sempre acertavam num alvo e, por milagre, não tinham mais consequências que alguns prejuízos materiais.
Mas não, não terminava aí. Passada uma hora, ou pouco mais, era vê-lo de novo no mesmo sítio a mostrar-se e a agredir verbalmente aqueles que dele tinham participado… mas a terra-mãe não voltava a exumar nesse dia.

Nas cercanias, entre os que o não conheciam a não ser de vista, tinha fama de ratoneiro.
Isso lembrava-me, com frequência, a história antiga do quadrilheiro Manuel Domingos Louzeiro, conforme tinha sido contada por António Aleixo e divulgada pela voz do Adriano:
Desse rei dos criminosos
Direi aos que o conheceram,
Poucos crimes apareceram
E poucos são os queixosos;
Apenas alguns medrosos
Terrível fama lhe dão;
Para a justiça só são
Os seus crimes dois ou três,
Mas coisas que ele não fez
Contam-se mais de um milhão.

Tudo o Domingos pagava,
E ele às vezes nem sabia
Que à sua sombra vivia
Gente que passa por justa,
Fazendo crimes à custa
Dos roubos que ele fazia. (1)

Não é que enjeitasse a oportunidade que, como bem nos tem sido ensinado, a ocasião faz o ladrão; não a família desestruturada, a falta de cultura e o analfabetismo, a miséria, a fome e a doença, a sujeição e a humilhação. Não, nada disso. A ocasião é que era, quando a necessidade, tal cão açulado, o mordia feroz e perigosamente.
Não se distraíssem pois, por perto do Pirilau que, se ele apanhasse a jeito, esquecido, um objecto que lhe pudesse render o que fosse…
Já tinha sido visto a ludibriar, seguranças e empregados de supermercados, para trazer sob a roupa escassa ou nas algibeiras fundas, uma coisa qualquer que comer, ou pudesse vender, para com o dinheiro obtido, comprar algo destinado à refeição mais imediata, ou se não chegasse para tanto, ao copo ainda mais urgente.

“Com os copos” – ou melhor, o líquido que deles escorropichava – o Pirilau gabava-se dos seus feitos como quem fala de um púlpito para a nação do Cruzamento do mundo. As mais das vezes, procurava mostrar ser mais esperto que as suas vítimas e, por isso, merecedor de respeito, admiração e de apoio incondicional à candidatura, sempre prometida, para presidente da Junta local. Quando lhe observavam, em provocação, estar a repetir a pro-messa eternamente adiada de ser candidato, respondia acintoso que isso só fazia prova da sua qualidade para o exercício do cargo quando, outros com maior número de promessas e igualmente mentirosos, o logravam atingir. “Mas nem todos”, contemporizava

Quando à noite o Cruzamento era um ponto vazio na geografia da cidade e, mesmo assim, lugar de encontro no recolhimento do único snack que teimosamente ficava aberto a desoras nas imediações, o Pirilau, se ainda andasse por ali – e tal significava que a carraspana desse dia estava a ponto de levá-lo ao hospital – iria tentar pedinchar a um ou outro freguês, pedir fiado ao “patrão” e, quando este lho negasse, provocar o proprietário, até que a gritaria acabava com o dono da casa a erguê-lo do chão em peso e levá-lo para a rua, enquanto com os pés no ar, o Pirilau, tentava pontapeá-lo. O comerciante fechava a porta, ficando na rua o Pirilau. Do lado de fora… do lado das pedras.

 Depois… Bom, depois, com os vidros das janelas parti-das e fechadas as portadas de madeira, deitado sobre o asfalto, gritava a lengalenga da terra asfixiada e sepultada. Chegavam dois carros da polícia e voltava tudo ao princípio no Cruzamento do Pirilau.
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(1) Excertos do poema de António Aleixo, HISTÓRIA DO QUADRILHEIRO MANUEL DOMINGOS LOUZEIRO. Cantado por Adriano Correia de Oliveira


Lisboa, Janeiro de 2010
João Rodrigues

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A nossa casa


A nossa casa


Ainda me lembro como em outros tempos – coisas de jovem…, percebes? – desejava, um dia, vir a possuir uma casa de janelas amplas por onde o Tejo entrasse e os astros, do dia e da noite, brilhassem como pêndulos de luz a marcar o tempo. Uma casa sem muros que barrassem o passo ou dividissem o indivisível chão. Uma casa com a porta da frente voltada para ti, de onde quer que chegasses. Sem trancas nem ferrolhos. Aberta. Território sem fronteiras, livre e improfanável… a nossa casa.

Do fundo do meu ser nasceu e amadurou, até que fosse capaz de te receber inteira, para morares em mim.

Pensei, por fim, anunciar em toda a parte: estou pronto! Qualquer coisa deste género diria o cartaz, o spot, num grito transparente no meio da cidade conspurcada; ou o anúncio quase anónimo e subversivo, anichado em caixa baixa na página dos classificados, tal sussurro inquieto e clandestino.

Assim, preferi dizer-to, em segredo, também por não saber se o depois de ti existirá.

Risquei este mapa, que dobrei em quatro, e sobre uma das faces escrevi o teu nome de sol e lua.
Só posso esperar que me procures, se te aprouver. Então, se quiseres, procura dentro de ti – que o mesmo é dizer, dentro de mim – o rumo para me achares. É fácil, tal como um caminho de cordel. Tomando-se-lhe a ponta, vai-se-lhe desatando as pistas que deixei nele presas: segue a brisa que te traga o húmus e a maresia; enleva-te em secretos abismos e cheiros de óleos místicos, de ferros de indústrias velhas e cordame de amarrações de novas naus; persegue os ligeiros relâmpagos rebrilhantes que nascem no entrechocar e voltear inconstante das folhas do arvoredo; e mais, os espasmos do ar macio enrolado nos teus cabelos; procura o estremecimento brando da ternura que soltei na dobra do relento que te vai cobrindo.

Traz contigo, no bornal que sempre te acompanha, sementes armadilhadas de paz e alegria, e lança-as no vento Sul. Vais ver… Explodirão novos trilhos, veredas e avenidas que, só a tua vontade e o teu desejo, irão percorrer libertas. E traz trovas e baladas, também, para armares o meu amor guerrilheiro.

No caminho não te distraias, em vão, com qualquer acaso, saudade ou tristeza, que te possa roubar a poesia da jornada, porque te quero viva e total. Respira fundo o perfume das árvores que te guiam, escuta os pássaros que cantam só para ti um improviso perpétuo e, por isso, imperfeito. E no limite do teu olhar vê o mar a embalar um ocaso de cores selvagens.

Quando chegares será noite. Não tropeces nas estrelas que eu deixei por aí espalhadas. Guia-te pelo luar aceso no alpendre. Não desfaleças com o seu brilho, é apenas o reflexo do meu amor a ti, do meu amor à vida.

À porta não procures a campainha. No rumor da natureza ouço-te chegar. Por isso te peço, se vieres até mim, entra sem bateres; uma única pancada forte, que sentirei então, no meu peito, será o chamamento para ir receber-te jubiloso. A passagem, está franqueada na entrada larga, como os meus braços abertos.

Toma-me fundo no teu cio, e profana o meu corpo, como até aqui tens feito amando-me, quando sou eu quem procura delinquir-te, em pretensa iniciação de ritos carnais.
Deixa, depois, que durma encostado na maciez dos teus seios. E tu, descansa enroscada no meu corpo, o rosto pousado no meu ombro. Guardamo-nos, um ao outro, para o porvir, neste sono-sonho-satisfeito.


Eis a minha casa.
Dirão que é imaginária. Não acredites! Nada pode ser mais real que a casa que o nosso ser reveste, aquela a que os nossos corpos, juntos, dão sombra e protegem.

Eis o meu lar. A casa que desenhei com as minhas mãos no fogo do teu ser, sem placa toponímica ou número de polícia. A minha casa sou eu e és tu ao chegares a mim, sempre que te pressinto… sempre que te penso. E esta é a porta por onde te adivinho e onde me reencontro e reconheço como num espelho.

Não te esqueças…, quero que não a feches ao saíres. Por ela entrarão os dias esgotados que se renovam no amanhecer. Todos podem vir em busca dessa aurora, ou procurarem, na casa que inventei em ti, o abrigo de uma noite apenas, a emoção de um amor diferente, mesmo sobre momento da partida.
Por isso não esqueças… Deixa a nossa porta entreaberta.

 Lisboa, Setembro de 1996
João Rodrigues
Dezembro de 2009

Sombra imensa

Sombra imensa


O puto esfregou as ramelas recalcitrantes, fungou duas vezes a desafiar nos ouvidos o comboio que partia, puxou para cima os calções que teimavam em cair e correu desabrido, escorregando na terra solta monte acima para, da pequena elevação, enfrentar o sol tardio e, então, de punho cerrado e erguido, olhar a sua sombra imensa que escurecia a terra avermelhada até atravessar sem cuidado lá no fundo, a linha do comboio.

Admirado por ser tão grande ante a natureza e as coisas dos Homens, gritou:

- Pai!... Mãe!... Vocês geraram um monstro!
  
 Lisboa, Outubro de 1996
 João Rodrigues