sábado, 19 de fevereiro de 2011

O "predador"

O “predador”


– Hoje estou imprópria para consumo – desabafaste.
Observei-te com mais atenção para encontrar os vestí-gios que a noite deixara presos em ti. Vi a tua palidez, o teu olhar cansado de olhar, os lábios à procura do lugar onde costumavam sorrir.
Estavas perfeitamente “consumível” para um predador voraz como eu sempre à espreita que a presa abalada, tombasse a cabeça no meu ombro disponível.

– Não quero abusar assim de ti – continuaste. –  Sei que posso contar contigo e, quando me sinto a caminhar sobre as águas e de fé abalada, é a ti que recorro como a um deus-irmão, para que me sustenhas, me impeças de afundar.
– Estás maravilhosa, como sempre. Só precisas de te abandonar às vagas dos dias, deixar que as coisas se re-solvam na espuma da rebentação…
– Preciso que me ajudes a passar as tormentas – intrometeste-te. – Não que inventes sessões avulsas de psicanálise e poesia marinha…
E concluí enquanto prosseguias.
– …e então, verás, que toda essa espuma desaparece bebida pelo areal sequioso do qual somos infinitesimais grãos.
– …como mais uma teia em que hei-de prender-me. – Dizias. – E o que preciso é de me libertar, de acender no restolho das esperanças que ajuntei, o fogo de um futuro que, embora breve, me ilumine da felicidade que, como qualquer pessoa, preciso sentir.
– Deixa então que te ofereça a ardência do refúgio que inventarás no meu corpo. Não posso deixar de ser o que sou. Esta voracidade está na minha natureza. Alimento-me da debilidade dos fracos, das suas indecisões e cobardias.
– Não é isso que eu quero… ou que quero de ti.
– Mas é isso que eu tenho para dar, visto que a nossa amizade longínqua e, até agora, inabalável, se tem com-posto da minha espera, enquanto respiras como a caça que fareja no ar o perigo emboscado. Vou disseminando, no teu caminho que acompanho, pequenos prazeres, doces ardis, que te trazem até mim.
– Tu não és assim como dizes. E não são as tuas malícias ou artifícios que me desconstroem e conduzem insegura, sofrida e desencantada. Pelo contrário, resgatas-me à ingenuidade para absorver, viva, as ternurentas armadilhas e loucuras que me prendem cada vez mais. E, apesar disso, abres as tuas mãos que me retêm e, com voz vacilante, dizes: Voa!
– A verdade é que estás saborosíssima hoje. Tal como sempre te encontro nos meandros dessa fragilidade sugestiva. Não sei já se estou cansado de te amar sem te possuir ou de te possuir sem que me tenhas amado.
– És um cínico, sem dúvida. Dispo e visto a pele da minha alma sob esse teu olhar de caçador que ama a presa e lhe faz pulsar o sangue, devora-a com os sentidos despertos mas calados, antes do ataque que nunca acon-tece, apesar de inebriado pelos sinais, trilhos e pistas que espalho para ti. Afinal, só me deixas mais submersa em solidão cada vez que sais por essa porta, largando, atrás de ti, conselhos, que só por ti deviam ser usados.
–  Não podes…
– O quê… Amar-te?

                                                                                 Lisboa, 19 de Fevereiro de 2011
                                                        João Rodrigues

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A Idade dos Porquês ou O sentido da língua

A idade dos porquês
ou
O sentido da língua


Perguntas-me porquê.
Porque é que eu te pergunto, tantas vezes, porquê?
E como tudo precisa de uma razão para manter os equilíbrios da natureza e do cosmos, revelo-to sem rebuço ou simulação.

No entanto, antes, poderia dizer-te que se to explico agora é para que esses equilíbrios não sejam afectados, do mesmo modo que o meu mundo corre o risco de ruir quando as dúvidas me abalam e as tuas respostas não chegam ou vêm carregadas de incertezas universais.

Pois é simples, muito simples mesmo.

A resposta a esta tua questão é que estou agora na Idade dos Porquês.
Passei já todas as outras idades, marcantes como a Glaciar, a Média, a Idade Moderna. Enfim, fui crescendo, aprendendo coisas. Todas as coisas que me era dado absorver através da experiência. Isto porque desde criança aprendi tudo o que pôde, não porque perguntasse – nunca fui grande perguntador, mercê da timidez assanhada que me consumia como uma doença, quiçá, genética – mas porque experimentava com os meus sentidos os sentidos que as coisas tinham.
Usei para esse fim todos os recursos ao meu alcance.

Escutei. Calado, ouvi como quem escuta e, nem tudo fazia sentido. Algumas dessas coisas, varadas pelo tempo, passaram a ter significado e a impor-se pela lógica. Muitas outras, ainda hoje, permanecem dúbias, nebulosas ou, apenas, insignificantes para além do ruído de fundo… Percebi que das tuas palavras se evolavam os sentidos todos e te ausentavas de nós… Aprendi que tinha que dar-lhes outro sentido.

Também vi. Olhei ensimesmado e, se me deslumbrei, foi pelo pensamento árduo, alavancado. Quanto observei, do mais hediondo ao mais belo, verifiquei que tinham as cores, o brilho e profundidade do amor e da nostalgia, da dor e do espanto, da paixão e da procura.
Da transparência das almas, eu vi que são opacas… mas aprendi a transparecê-las.

Cheirei. Inalei na inspiração o vivo e o morto que fediam. O odor a flores velhas dos defuntos, o cheiro policromado dos ventos, a terra chovida como pintada de fresco, a secura dos campos em pleno Estio. Só por respirar senti o aroma do teu corpo com o meu misturado… mas aprendi que, preso no teu cheiro, adormecia feliz.

Tacteei. Apalpei, agarrei; senti e descobri as dobras e as formas. Feri-me nas arestas entre o sonho e o pesadelo. Achei o arredondamento do mundo prenhe nas minhas mãos, e prendi-lhe nos meus dedos as asas, para que não voasse para longe de mim… mas aprendi que fugia sempre.

Saboreei. Degustei a terra e a água, as ervas, o mel, o vinho e o pão. O sabor do ferro e do chumbo, da seiva e do sangue. Até o paladar da fome tem cor: é negro-negro; e tem uma forma fina… aguçada, com cheiro a lume-frio.
Descobri que gosto do gosto que a vida tem. Ora doce ora amargo, como tu… e isso eu aprendi em ti.

Mas do que falo é do outro sentido. Do sentido que damos às coisas, quando as coisas nos são dadas pelo que sentimos, falamos ou escrevemos. É o sentido da língua.

O último sentido. Oculto, escondido entre sabores, é o sentido revelador que confirma e descobre cheiros e traz claridade à tela, para com crueza revelar a imagem que pinto, reinventando-te, na memória dita.

Que sensações a língua transmite! De poder e de humildade nas palavras ásperas ou macias, no grito revoltado, ou num murmúrio nervoso… Tudo a língua sente e dá a conhecer: desde o gelo afiado da dor da lonjura, ao calor brando do teu corpo de vertigem.
O sentido da língua, mais que buscar fundo nos outros cinco sentidos, é ele que me questiona se o sal do mar é a camada de azul que o reveste ou se o céu sabe a um infinito nublado ou à via láctea na noite mais acesa.
A língua junta todas as palavras para dizer as incertezas que as minhas outras sensações mascaram. Depois quer as respostas – que preciso que me dês – para saber se fala ou não do prazer de te saborear na cumplicidade da tua língua a experimentar-me finalmente.

É traiçoeiro, aquele que trai o que lhe é confiado, ou adultera aquilo que fielmente deve transmitir. Assim é a língua que morde, mastiga, engole e regurgita sons que não espelham e não são fiéis ao que os outros sentidos lhe confiaram.

É um sentido único e proibido ao mesmo tempo. Porque a nenhum dos outros se compara por ser um sentido colectivo, por assim dizer, a conjunção dos restantes cinco, e porque, quando se cala, silencia a expressão dos demais sentidos.

É que, quando vejo o que olho e não consigo lobrigar as coisas que observas; quando tomo o teu cheiro e paladar ou te toco, não adivinho o que respiras, saboreias e sentes, deleitosa ou aborrecida. Preciso que me digas…


 Lisboa, Outubro de 1996
João Rodrigues

Reencontro

Reencontro


Cada vez que passo na tua rua, ao olhar a janela de sacada do primeiro andar, revejo-me nela, a fumar tran-quilo, a olhar o céu azul com o jacarandá florido que se abre em nuvens lilases, a projectar sombras e lantejoulas sobre o chão em que nos amámos.

Lá porque emigrei de nós um dia, não significa o olvido, o abandono ou a traição. Não te poderia esquecer porque não queria, e deixar-te face ao desencanto, não foi mais que devolver-te ao espaço e à vida, como a um ecossis-tema do qual fazias parte, e antes te pertenceram. Traição sim. É verdade. A mim, à minha existência, aos meus sonhos que amputei.
Aqui, longe, acompanho com saudade, os teus sucessos. Sei que cada um deles é composto das camadas exteriores que se vão sucessivamente depositando, na forma como passas por outras tantas experiências relacionais. Mas tem como endoderme a tua passagem por mim. Uma oculta, mas indelével marca de água, sobre a qual grafas os teus êxitos recentes.
Assisto, através do olhar expositivo de alguns amigos, ao lançamento do último livro. Se o obtenho, vai juntar-se aos anteriores que acompanham a pasta onde permane-cem diversos originais manuscritos e constituem um ar-quivo das tuas obras completas. Completas, não por esses textos que me dedicaste, mas porque sou, eu próprio, parte desse espólio, sem o que ficaria, irremediavelmente, inacabado o trabalho criado com os teus sentidos e as tuas ideias e mãos que me esculpiram.
É verdade que desejo encontrar, quando te leio, referências, lugares, alusões, imagens subtis que nos teus actuais escritos me transportem por uma porta misteriosa a um interior de ti onde eu ainda more, me encontre e possa perdoar.
Mas não. Nas entrelinhas descortino, por vezes, para além de uma luz que reconheço, uma paleta de cores quentes a anteceder poentes que foram nossos, ou ainda, fios de luar que entressinto abrir a noite das palavras mais escuras.
No entanto, é já a urgência que te ocupa, e faz que te espraies num delta de delícias entre a calma obscuridade das margens que te abraçam. Procuras, aliás como sempre o fizeste, o mar, que voltas, sempre e sempre, a alimentar da tua força e serenidade, da tua dor e da magia de prazeres cariciosos que só tu consegues inventar.
Ao pôr isto no papel, quis, talvez, praticar um exorcismo sobre a memória que me avilta, quando, de passagem na tua rua, olho para a tua janela cerrada, e vejo na ferocidade do tigre do tapete largo no soalho da sala, o combate dos nossos corpos, em marés de sal engastados, a tentar extrair o deleite que ao outro se dedica.

Agora, quando passo, ao olhar a tua janela, sinto-me livre dos nossos fantasmas que se espreitaram escondidos no tempo. E, com o poder do qual me invisto, ao assinar deste modo insolene, esta acta, acerca dos anos de-corridos, revogo a ausência, o vazio acidentado, o nosso desencontro incidental e, com a mais completa falta de vergonha, decreto o reencontro para sempre.


Lisboa, 3 de Janeiro de 2011

João Rodrigues

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Deolinda - Parva que Sou, Coliseu do Porto.

O beijo

O Beijo

– Se me deres um cigarro, dou-te um beijo.

– Isso não é uma troca justa.

– Porque não? Os meus beijos são valiosos. Não ando a oferecê-los a qualquer.

– Ora… Porque ao beijares-me eu beijava-te, logo estavas a trocar beijo por beijo. Ficavas a ganhar. Soma-vas o beijo ao cigarro, em troca de um beijo só.

– O que não é justa é essa argumentação. Não há muito tempo dizias que fazias qualquer coisa por um beijo meu.

– Pelo teu beijo e pela sua repercussão sideral na libido que me avassalava e na troca ansiosa e convulsiva do gozo insano que partilhávamos.
– Repara. O beijo para o ser de facto tem que ser partilhado. Assim como uma troca, que não é troca porque não se trata de moeda de câmbio, é… uma dádiva que se comunga… algo arrancado ao amor, que em vez de lhe retirar qualquer coisa o acrescenta.

 – Não me surpreende o teu romantismo. Não é novo nem o acho serôdio ou sinal de senilidade. Fica-te bem, como as cãs que despontam nas tuas têmporas. Conheço-te quase como me conheço. Fico admirada por não que-reres que nos beijemos agora. Quando me apetece, porque não te apetece a ti?

– Eu disse que não me apetecia?
O que eu digo é que não é negociável. Quero os teus beijos sempre, como se desejasses os meus. Como se cada um deles fosse ainda o primeiro, não um objecto de troca mercantil.

– Mas afinal, dás-me o cigarro ou tenho que ir procurar a “outro lado” para não ter que sair daqui e abandonar toda a gente só para ir comprar tabaco?

– Já viste que estamos para aqui a falar do comércio de cigarros e de beijos, como se estivéssemos sozinhos, estando sós na realidade? Ninguém dá pela tua falta, ou pela minha. Estamos aqui os dois unidos por interesses comuns e, pelos vistos, também negociáveis. Todos os outros, ali na sala, encontram-se agrupados no debate e negociação dos seus próprios interesses comuns.

– Que posso fazer para te dar um beijo… um simples beijo?

– Tarde de mais. Já não tenho mais cigarros.

             Julho/2010
 João Rodrigues

sábado, 5 de fevereiro de 2011

A noite nova





A noite nova


Com o ombro encostado à divisória de vidro da paragem dos carros eléctricos, o homem com as mãos nos bolsos do anoraque branco, permitia aos seus olhos apreenderem a agitação da noite que, com os seus longos cabelos brancos, sem embaraços aparentes, dançando, rebolando a cintura de mão em mão ao som da banda e, sorvedora, buscando a embriaguez espumosa de garrafa em garrafa, falecia.
Ele viera ali por isso – e só agora se dava conta de tal – para enterrar um nado monstruoso e triste que nascera no ventre da incerteza e desesperança e que, durante doze meses inteiros, estivera sexualmente activo em nós, e gerar e sugerir o parto do seu filho dilecto: o novo ano que aí vem com as mandíbulas armadas de estiletes afiados e de fauces escancarada para, sem subtilezas desnecessá-rias, devorar o que de nós ainda restar.

Antes, quando chegou, meteu-se por carreiros movedi-ços, abertos na floresta de pessoas, pernas,  garrafas, bra-ços, copos, corpos com apêndices de vidro donde jorravam alegria e torpor. Foi levado como célula sanguínea que alimentava aquele compacto ser nocturno, em sobressalto, solavancos e ritmos. Focos coloridos adejavam sobre o povo, para em seguida se recolherem aos favos da sua colmeia luminescente e ruidosa.
Depois de voltear em trajectórias labirínticas, não conseguindo, ou não querendo, bater-se para rodear a figura equestre do monarca antigo daquela praça, foi excrementado por um dos tubos que a horda fazia e refazia em movimentos volúveis.
Despejado no tapete de calçada portuguesa, no limite do largo, do lado do arco triunfal, atravessou a via dupla de carris para se refugiar na paragem dos eléctricos, onde, por não haver um lugar vago onde se sentar, se apoiou contra um cartaz publicitário, envidraçado de luz, no interior desse abrigo destinado a quem espera. Esperou.
Esperou que as dores nas pernas se desvanecessem; passaram. Esperou um telefonema combinado; não acon-teceu. Esperou que os pensamentos se realinhassem fora dos acordes gritados pela aparelhagem no palco; con-seguiu. Um rosto conhecido ao alcance na penumbra; não passou. O auge da festa como quem espera a própria morte; e este chegou, devagar, ruminando, pachorrento, cada minuto.

Envolvido na lentidão pendular do tempo, pensava na razão de estar ali suspenso. Ela não aparecia. Não telefo-nara, pelo menos a dizer que, afinal, não queria assistir à degradação e estertor da velha de trezentos e sessenta e cinco noites, passadas como se tivessem sido outros tantos anos de escuridão, finalmente, lançados para a cova mais profunda da memória. Queria, talvez, fazer o ofício fúnebre com doze passas e espumante, dentro da sua própria solidão ou, no recato familiar mortificada.
Amortalhar esse período no lençol de névoa do esque-cimento e celebrar aquela morte, desde o berço envolta em panos de pobreza,  egoísmo, e feroz exaltação de um poder desmedido.

A música sofreu um fanico. Desvaneceu-se num suspiro longo de acordes moribundos. A multidão, que por o ser, parece imensa e tentacular, é uma massa indizível de gente ululante e saltadora. Sorrisos, aconchegos de voz sugestiva em ouvidos expectantes, gritos e gargalhadas, aplausos e abraços.

Voltou a prestar atenção às numerosas pessoas que, entretanto, preencheram o abrigo onde se encontrava.
Um casal jovem sentou-se na beira do passeio. Um homem, por vezes, falava com o rapaz que, com a namorada, estavam aos seus pés. Quase sobre o lancil do passeio, voltava as costas ao largo e olhava-o a espaços a confrontá-lo. Lentamente, porque aguardava as badaladas sinistras que se transformariam em luzes ribombantes, fogachos e jorros coloridos, ia soltando a rolha da garrafa do vinho espumoso.
A mulher que encostara o ombro ao painel, acompa-nhara com movimentos enleantes a música estridente e tirou de um saco que tinha no chão, um conjunto de copos de plástico. Quando o fez, encostou com força sugestiva ao indivíduo de anoraque branco, as nádegas que ainda fremiam, electrizadas pela sonoridade que a impregnava.
O homem da garrafa olhou-os com o rosto fechado.
Do palco soava, ecoado pela turba: …Quatro. Três. Dois. Um. Estamos em dois mil e… ! – Gritava o som.

Tinha sido dado o salto fatídico. Aí estava o descendente daquela noite que ficava pela metade de si mesma. E as nádegas continuavam lá, a conduzirem-no a um luto rápido e esquecimento de tudo.
 Ao redor saltaram as rolhas das garrafas. O homem verteu a espuma fina, que se evaporava como a noite, nos copos estendidos. Por todo o lado os afagos discretos e exaltações paradoxais, davam lugar a amplexos apertados e ósculos mais ou menos ternos. Estrondeava o fogo-de-artifício e sibilava o fogo preso que sitiava a praça a partir dos telhados. Sobre o rio o espectáculo coloria o veludo preto do céu. Gritavam vuvuzelas, reco-recos roucos, sire-nes incendiavam o âmago dos silêncios entrecortados. Os olhares chispavam reflexos brilhantes e apagavam-se de-vagar ao extinguir-se um resto do lume aéreo.

A mulher, manteve a alegria aparente e devoção à cerimónia, enquanto a aparente família a abraçou e beijou sem particular efusão, ficando quase todos agarrados ao desconhecido com anoraque branco, por detrás dela. Ela voltou-se, sorvendo o líquido claro, olhou de frente o estranho, envolveu-o com os braços e o riso aberto, du-rante largos segundos, ele sentiu pulsar o peito quente dela no seu, e os dedos dela a percorrer-lhe sem pressa os músculos tensos das costas e a nuca.
Três pares de olhos e, talvez, outros mais que não viu, olhavam-nos sem expressão. Ele, por sua vez, espantado, devolvia o olhar mudo de inquietação, sem mais prazer que a certeza do erro de ter ido ali sozinho para ser testemunha da execução da última das noites miseráveis. Parado, preso na surpreendente mulher, procurava achar, pelo menos, um meio sorriso de desculpa ou agradeci-mento que não surgia, quando ela lhe aflorou os lábios com os dela, indiferente e desbragada.
O outro, com o copo já vazio e a garrafa nas mãos, deu um passo na sua direcção, de rosto fechado e olhar velado como o ar em volta, saturado do nebuloso fumo, parecia querer rebentar na cadência do foguetório. Fixou a mulher de relance e voltou a varar os olhos do estranho. Ergueu a garrafa e ofereceu com voz sossegada.
– Quer beber? Nós não queremos mais. Não temos é mais copos para lhe dar…
E ela, com o calor do sorriso sempre aceso, apoiou.
– Bom ano novo…
O filho afastou a mãe para o abraçar também.
Foi enlaçado com força e sentiu um frio entrar-lhe pelas costas até ao fundo do peito. Escorregou encostado ao vidro, enquanto sentia alagar-se no sangue que corria quente.
Falou pela primeira vez na noite que já finara e no dia que nunca chegaria a nascer:

–  Ano morto, ano posto. Viva o Ano N…
Lisboa, 1 de Janeiro de 2011
João Rodrigues

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O "Pirilau"

O “Pirilau”

Era naquele movimentado cruzamento de ruas em que, parecia, toda a cidade se cruzava, que funcionava, por simplesmente acontecer, o ponto de encontro da freguesia, todas as manhãs.

Quem alguém quisesse encontrar, era para o Cruza-mento que se dirigia. Se a pessoa buscada não se encontrasse no ponto de encontro, era sempre possível – como num balcão de informações e sem grande burocracia ou obrigação de preenchimento de formulários – pergun-tar, em troca de um bom dia, a um conhecido que de certeza lá estaria, pela pessoa em questão.
Em último recurso poderia sempre saber o que pretendia ou, até o que não queria saber, se se dirigisse ao “Pirilau”.

Este cruzamento era verdadeiramente o centro da vida da comunidade, o coração pulsante alimentado por essas duas artérias que ali confluíam. E cruzavam-se como ma-deiros cravados à vida das suas gentes.
Aí, e em vias contíguas, era sítio de cafés restaurantes e casas de pasto, supermercados, sapatarias e sapateiros, lojas de roupas e alfaiates, de bugigangas louças e tapeça-rias, de ferragens, artigos eléctricos e ferramentas, depen-dências bancárias ourivesarias e cabeleireiro, lojas de animais e produtos naturais, de chineses indianos e paquis-taneses, escolas primárias, farmácias, hospital militar e centro de saúde civil, de paragens de autocarros e de carros eléctricos, de igreja paroquial católica e igreja evan-gélica protestante… Enfim, sem ser exaustivo, existia tudo aquilo que já não cabia no espaço nem na competência do mercado municipal que estava logo ali.

Para que o mundo girasse e fluísse ordeira e satisfa-toriamente, o Pirilau, dada a inexistência de semáforos ou polícia sinaleiro, colocava-se no meio da encruzilhada, apitando desalmado, erguendo as mãos abertas e esten-dendo os braços para a esquerda ou direita, numa dança de equilíbrio precário rodando sobre um dos pés, conse-guia, sem a ajuda de ninguém, organizar a maior confusão rodoviária, com coro de buzinadelas a pontuar a exibição.

O centro do mundo. Um mundo pequeno talvez, todavia, um mundo com seu centro.

Volta não volta este era sacudido por um cataclismo em forma de gente.
Um metro e quase sessenta de altura, magro como a fome que trazia amontoada ao longo de quarenta e seis anos de existência, o Pirilau – Assim era conhecido o Augusto Simão – rindo, fazia tremer o Cruzamento e abalar tudo o que era gente naquele local, até que as forças da ordem o detivessem mais uma vez.

O Pirilau como os profissionais da venda ambulante, que saíram da rua para o interior do novo mercado municipal, transferira com eles, a actividade profissional de carregador de caixas e sacos de produtos para a venda.
Era remunerado com alguma caixa de morangos ou kiwis, um saco de laranjas, limões, meloas, ou qualquer outra espécie que pudesse vender no seu périplo pelas “capelinhas” onde não estivesse proibido de entrar, quando não recebia umas moedas em troca do carrego realizado. Procurava então, à porta de cafés, restaurantes e afins, os clientes, conhecidos ou não, ou mesmo no meio da rua, mostrando o seu artigo como um cigano: “– Já viu a categoria deste relógio?... venha cá…! É um rólecsi! Vendo barato senhôri… Só dez érios… mas por ser pra si, faço-lhe a cinco. Na quéri?... Átão quanto é que dá?”
Parecia ser movido por uma energia renovável e inesgo-tável. Não tinha parança. Mesmo quando nas escassas ocasiões em que conversava comigo, estava a trabalhar. Com um olho no burro e outro no cigano, enquanto contava entusiasmado a sua aventura da noite passada entre o Cruzamento e a esquadra da polícia, mexia-se apoiado ora num pé ora noutro, rodando a cabeça para encontrar alguém que, como já sabemos, ali sempre era possível encontrar, para, abrindo o saco de plástico, revelar os “dois quilos duzentas e sessenta de carapau fesquinho qu´eu fui ali pesar ó senhor António… vão mesmo a calhar consigo pró o almoço e só paga um quilo”, ou com passos rápidos abordar um “amigo” que lhe “arranjasse” um cigarro ou lhe pagasse uma taça de vinho.
E este era, sem dúvida, um dos combustíveis do Pirilau. E ele abastecia com a regularidade que lhe permitiam os proventos da manhã, ou a multiplicação do número de “voluntários” abordados para lhe pagarem um copo.

Quando lhe aparecia, o Pirilau fazia qualquer gancho. Desde servente de obras a carregador de bilhas de gás ao domicilio, ou compras e recados vários em troca de recompensa. Não raro, vi alguma velhinha entrar na Canoa para deixar pago “mais um pénalte para o Pirilau”.

Dizem que tinha maus fígados e, de facto, ou não era isca de qualidade que aguentasse o tempero, ou era por beber demais para o corpo que tinha, que o fel lhe subia à cabeça.
Por vezes, sentado na soleira da porta de um prédio por ali, de preferência uma casa comercial onde houvesse gente reunida, esgravatando com um pau, qualquer instru-mento, mesmo com as unhas como garras, arrancava uma, depois outra e mais das pedras calcárias do passeio e, com a terra à vista no buraco aberto, fazia sobre ela uma reza ecológica, protestando e vociferando contra o poder e a inacção dos seres humanos que viam e permi-tiam que o ser vivo que era a terra fosse sepultado debaixo de pedras e alcatrão, impedida de respirar, de beber as águas que do Céu lhe eram mandadas para que se desse-dentasse, alimentasse e procriasse, de dar a sua quota parte de natureza verde para satisfação dos animais, dos Homens, e dos vermes.
À medida que a oração dava frutos visíveis nele e nas reclamações dos comerciantes, pela má vizinhança produ-zida e, a terra à mostra permanecia como cavidade de gengiva exangue, a sua voz ia subindo o tom ameaçador, injuriando quem estava, quem passava e os que ainda haviam de chegar.
Invariavelmente, acabava com a polícia a detê-lo, por ter apedrejado as montras dos ofendidos comerciantes e pôr em risco ao redor, os automóveis e a integridade física de quem andava naquele lugar, com as suas pedradas cegas e sem direcção que, por mistério, sempre acertavam num alvo e, por milagre, não tinham mais consequências que alguns prejuízos materiais.
Mas não, não terminava aí. Passada uma hora, ou pouco mais, era vê-lo de novo no mesmo sítio a mostrar-se e a agredir verbalmente aqueles que dele tinham participado… mas a terra-mãe não voltava a exumar nesse dia.

Nas cercanias, entre os que o não conheciam a não ser de vista, tinha fama de ratoneiro.
Isso lembrava-me, com frequência, a história antiga do quadrilheiro Manuel Domingos Louzeiro, conforme tinha sido contada por António Aleixo e divulgada pela voz do Adriano:
Desse rei dos criminosos
Direi aos que o conheceram,
Poucos crimes apareceram
E poucos são os queixosos;
Apenas alguns medrosos
Terrível fama lhe dão;
Para a justiça só são
Os seus crimes dois ou três,
Mas coisas que ele não fez
Contam-se mais de um milhão.

Tudo o Domingos pagava,
E ele às vezes nem sabia
Que à sua sombra vivia
Gente que passa por justa,
Fazendo crimes à custa
Dos roubos que ele fazia. (1)

Não é que enjeitasse a oportunidade que, como bem nos tem sido ensinado, a ocasião faz o ladrão; não a família desestruturada, a falta de cultura e o analfabetismo, a miséria, a fome e a doença, a sujeição e a humilhação. Não, nada disso. A ocasião é que era, quando a necessidade, tal cão açulado, o mordia feroz e perigosamente.
Não se distraíssem pois, por perto do Pirilau que, se ele apanhasse a jeito, esquecido, um objecto que lhe pudesse render o que fosse…
Já tinha sido visto a ludibriar, seguranças e empregados de supermercados, para trazer sob a roupa escassa ou nas algibeiras fundas, uma coisa qualquer que comer, ou pudesse vender, para com o dinheiro obtido, comprar algo destinado à refeição mais imediata, ou se não chegasse para tanto, ao copo ainda mais urgente.

“Com os copos” – ou melhor, o líquido que deles escorropichava – o Pirilau gabava-se dos seus feitos como quem fala de um púlpito para a nação do Cruzamento do mundo. As mais das vezes, procurava mostrar ser mais esperto que as suas vítimas e, por isso, merecedor de respeito, admiração e de apoio incondicional à candidatura, sempre prometida, para presidente da Junta local. Quando lhe observavam, em provocação, estar a repetir a pro-messa eternamente adiada de ser candidato, respondia acintoso que isso só fazia prova da sua qualidade para o exercício do cargo quando, outros com maior número de promessas e igualmente mentirosos, o logravam atingir. “Mas nem todos”, contemporizava

Quando à noite o Cruzamento era um ponto vazio na geografia da cidade e, mesmo assim, lugar de encontro no recolhimento do único snack que teimosamente ficava aberto a desoras nas imediações, o Pirilau, se ainda andasse por ali – e tal significava que a carraspana desse dia estava a ponto de levá-lo ao hospital – iria tentar pedinchar a um ou outro freguês, pedir fiado ao “patrão” e, quando este lho negasse, provocar o proprietário, até que a gritaria acabava com o dono da casa a erguê-lo do chão em peso e levá-lo para a rua, enquanto com os pés no ar, o Pirilau, tentava pontapeá-lo. O comerciante fechava a porta, ficando na rua o Pirilau. Do lado de fora… do lado das pedras.

 Depois… Bom, depois, com os vidros das janelas parti-das e fechadas as portadas de madeira, deitado sobre o asfalto, gritava a lengalenga da terra asfixiada e sepultada. Chegavam dois carros da polícia e voltava tudo ao princípio no Cruzamento do Pirilau.
______________________
(1) Excertos do poema de António Aleixo, HISTÓRIA DO QUADRILHEIRO MANUEL DOMINGOS LOUZEIRO. Cantado por Adriano Correia de Oliveira


Lisboa, Janeiro de 2010
João Rodrigues

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A nossa casa


A nossa casa


Ainda me lembro como em outros tempos – coisas de jovem…, percebes? – desejava, um dia, vir a possuir uma casa de janelas amplas por onde o Tejo entrasse e os astros, do dia e da noite, brilhassem como pêndulos de luz a marcar o tempo. Uma casa sem muros que barrassem o passo ou dividissem o indivisível chão. Uma casa com a porta da frente voltada para ti, de onde quer que chegasses. Sem trancas nem ferrolhos. Aberta. Território sem fronteiras, livre e improfanável… a nossa casa.

Do fundo do meu ser nasceu e amadurou, até que fosse capaz de te receber inteira, para morares em mim.

Pensei, por fim, anunciar em toda a parte: estou pronto! Qualquer coisa deste género diria o cartaz, o spot, num grito transparente no meio da cidade conspurcada; ou o anúncio quase anónimo e subversivo, anichado em caixa baixa na página dos classificados, tal sussurro inquieto e clandestino.

Assim, preferi dizer-to, em segredo, também por não saber se o depois de ti existirá.

Risquei este mapa, que dobrei em quatro, e sobre uma das faces escrevi o teu nome de sol e lua.
Só posso esperar que me procures, se te aprouver. Então, se quiseres, procura dentro de ti – que o mesmo é dizer, dentro de mim – o rumo para me achares. É fácil, tal como um caminho de cordel. Tomando-se-lhe a ponta, vai-se-lhe desatando as pistas que deixei nele presas: segue a brisa que te traga o húmus e a maresia; enleva-te em secretos abismos e cheiros de óleos místicos, de ferros de indústrias velhas e cordame de amarrações de novas naus; persegue os ligeiros relâmpagos rebrilhantes que nascem no entrechocar e voltear inconstante das folhas do arvoredo; e mais, os espasmos do ar macio enrolado nos teus cabelos; procura o estremecimento brando da ternura que soltei na dobra do relento que te vai cobrindo.

Traz contigo, no bornal que sempre te acompanha, sementes armadilhadas de paz e alegria, e lança-as no vento Sul. Vais ver… Explodirão novos trilhos, veredas e avenidas que, só a tua vontade e o teu desejo, irão percorrer libertas. E traz trovas e baladas, também, para armares o meu amor guerrilheiro.

No caminho não te distraias, em vão, com qualquer acaso, saudade ou tristeza, que te possa roubar a poesia da jornada, porque te quero viva e total. Respira fundo o perfume das árvores que te guiam, escuta os pássaros que cantam só para ti um improviso perpétuo e, por isso, imperfeito. E no limite do teu olhar vê o mar a embalar um ocaso de cores selvagens.

Quando chegares será noite. Não tropeces nas estrelas que eu deixei por aí espalhadas. Guia-te pelo luar aceso no alpendre. Não desfaleças com o seu brilho, é apenas o reflexo do meu amor a ti, do meu amor à vida.

À porta não procures a campainha. No rumor da natureza ouço-te chegar. Por isso te peço, se vieres até mim, entra sem bateres; uma única pancada forte, que sentirei então, no meu peito, será o chamamento para ir receber-te jubiloso. A passagem, está franqueada na entrada larga, como os meus braços abertos.

Toma-me fundo no teu cio, e profana o meu corpo, como até aqui tens feito amando-me, quando sou eu quem procura delinquir-te, em pretensa iniciação de ritos carnais.
Deixa, depois, que durma encostado na maciez dos teus seios. E tu, descansa enroscada no meu corpo, o rosto pousado no meu ombro. Guardamo-nos, um ao outro, para o porvir, neste sono-sonho-satisfeito.


Eis a minha casa.
Dirão que é imaginária. Não acredites! Nada pode ser mais real que a casa que o nosso ser reveste, aquela a que os nossos corpos, juntos, dão sombra e protegem.

Eis o meu lar. A casa que desenhei com as minhas mãos no fogo do teu ser, sem placa toponímica ou número de polícia. A minha casa sou eu e és tu ao chegares a mim, sempre que te pressinto… sempre que te penso. E esta é a porta por onde te adivinho e onde me reencontro e reconheço como num espelho.

Não te esqueças…, quero que não a feches ao saíres. Por ela entrarão os dias esgotados que se renovam no amanhecer. Todos podem vir em busca dessa aurora, ou procurarem, na casa que inventei em ti, o abrigo de uma noite apenas, a emoção de um amor diferente, mesmo sobre momento da partida.
Por isso não esqueças… Deixa a nossa porta entreaberta.

 Lisboa, Setembro de 1996
João Rodrigues
Dezembro de 2009

Sombra imensa

Sombra imensa


O puto esfregou as ramelas recalcitrantes, fungou duas vezes a desafiar nos ouvidos o comboio que partia, puxou para cima os calções que teimavam em cair e correu desabrido, escorregando na terra solta monte acima para, da pequena elevação, enfrentar o sol tardio e, então, de punho cerrado e erguido, olhar a sua sombra imensa que escurecia a terra avermelhada até atravessar sem cuidado lá no fundo, a linha do comboio.

Admirado por ser tão grande ante a natureza e as coisas dos Homens, gritou:

- Pai!... Mãe!... Vocês geraram um monstro!
  
 Lisboa, Outubro de 1996
 João Rodrigues