sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Ainda falam comigo

Imagem extraída do blogue: OLHOS ABERTOS

Ainda falam comigo


A cidade tem destas coisas tecidas nas gotas do tempo. Endoi-da-nos para além do vórtice da loucura que quotidianamente nos devora.

No fim são, apenas, fios de memória: um passo, um gesto, outro passo; uma cor que se abre em luz e uma sombra além dela; uma chatice qualquer… uma dor que deixa cicatrizes; um espaço…, um vazio; um copo que tarda em vazar, calor, carícia, cumplicidade; bandeiras de vento, conspiração e sonho; sons, rostos, restos de tudo e tudo enovelado cá dentro, à espera, talvez, da ponta puxada por um olhar subversivo.
                                                                        Talvez…


Passavam caras e não as via. Nem os corpos, ou as vestes postas neles. Mas os rostos que por mim passavam estavam, também eles, enredomados num acrílico translúcido.

Assim, deveria eu estar enclausurado, tal como tantos, por trás de sucessivos não não não não… …, cansados de “mendigar” trabalho.

Igualmente, experimentariam a sensação de afogamento bran-do em suor, esbracejariam por entre a turba, afastando a insani-dade com golpes de pensamento entre as batidas furiosas na bigorna de silêncio do mundo que trazia nas têmporas.

A pressa que levava, haviam horas, pesava em mim agora e abrandei a caminhada.

Vã mais uma vez diga-se. Mais uma vez confundira perspectiva de emprego com esperança, promessas ilusórias com realidade. Um soluço sufocado explodia mudo no meu peito a revoltar-se pela aridez dos dias, enquanto os meus passos, guiados por qualquer mecanismo dissociado da razão, pareciam arrastar, como pesadas grilhetas, as lembranças onde pairavam, confusas, as conversas de hoje a conduzirem-me a outro beco sem saída semelhante a tantos de onde, nos dias anteriores, retrocedera.

E eu que só queria uma ruela menos estreita onde desembocar no remanso da palavra SIM.


Toda a gente, num bailado estranho, entrava pela língua de degraus que levavam à goela funda do Metropolitano e de lá saía regurgitada em cíclicos vómitos calados.

Os olhos que passavam por mim não me viam. Fixos em frente ou focados no chão, seguiam em ziguezagues dúbios, cada par o seu destino. Bichos cegos carambolando pelos túneis em busca de uma saída. Pareciam vir direitos a mim para, de repente, serem repelidos nas mais variadas direcções.


De súbito acordei para aqueles olhos que já de longe agarraram os meus e não os largaram.

Pareciam cantar hinos, ou coisa assim, os olhos dela. Um canto que trazia o rumor do mar, o calor do sol, o toque aveludado do luar. Mas não a paz. Vinham para mim dentro dos meus com escon-juros de tristezas, e torrentes de vida a retirarem-nos aos dois daquele lugar.

O nosso destino, quem o saberia dizer? Apenas que na estação onde ela saísse eu sairia. E ela iria sair na estação em que eu saísse também.

Assim, de olhos dados, lá fomos no comboio para fim incerto. Em boa verdade, como são todos os fins.


Perguntei-me se a conheceria de algum lugar remoto, daqueles lugares secretos que o meu tempo ainda guarda. E logo os meus olhos questionaram os seus: – Conheço-te? Respondeu-me meiga a voz dos seus: – Parvo! Nunca nos vimos antes. Talvez já nos tivéssemos olhado mas nunca nos vimos. E estou agradada por te ver hoje e aqui.

Os nossos olhos tocavam-se, cariciosos. Impeliam-nos a deleites e apaziguamentos da mente, a sussurros e audácias novas, conjun-ção de nervos tangidos pelo espírito e trazidos à flor da pele.

Quando saímos, tal como estava escrito, na plataforma mais ninguém existia e, apesar disso, parecia-me que o mundo inteiro espiava, aceso de sordidez, os nossos gestos e as falas indiscretas dos olhares que trocávamos.

Estamos quase a cruzarmo-nos.
Fitos nos meus, os olhos dela, já não se calam. Procuram res-postas que, perdido, não acho. Soçobrarei, de uma maneira ou de outra, quando a não encontrar em reminiscência fugidia ou, final-mente, a aceitar como a desconhecida que me desnudou a alma e fez fremir o corpo, numa estação do “metro”, apenas ao olhar com rubro despudor a minha alma tormentosa.

Percorremos, ainda, os poucos passos que nos separam.
Separam… ?

Inquietos, talvez momentaneamente cegos, os meus olhos es-quadrinham acervos da memória, revirando trôpegos e vorazes, em atropelo e sobressalto, pingo a pingo qualquer ínfima lembrança daquela face descontraída e bela que avança, cada vez mais próxima, para passar por mim, atravessar a minha vida e deixar-me atordoado, mais seco, mais frio e  mais só.

Passamos um pelo outro sem percebermos o que nos afasta agora, quando tendo-nos visto uma única vez, deixar que um rumo determinado e fugaz ou, pelo contrário, uma prisão cavada no preconceito rochoso e enganos de mutismo louco, impeçam os nossos olhos de se tocarem em paixão, numa derradeira tentativa de sobreviver neste vácuo em que teimosamente existimos.

Espera! – Quero eu gritar.
Mas o que sai é a voz dos meus olhos mudos e implorativos: – Por favor deixa que eu te conheça. Agora que já te olhei, não vás embora de mim.




Ficou a aflorar-lhe um ténue sorriso enquanto o seu olhar di-zia: – É pena. Tenho realmente muita pena por não me veres pois se me tivesses visto compreenderias o afago com que te deleito, a ternura que é dádiva da minha solidão e mortalha do meu silêncio.

A distância entre ambos desapareceu com os olhos a tocarem-se ainda numa despedida breve:
Adeus. – Disseram os olhos dela.
Estúpido!!! – Gritaram os meus.

Abrandando ainda mais a marcha, achei-me entre zombies fu-riosos a patearem o átrio das bilheteiras, e tinha nos meus os seus olhos.

Parei a voltar-me para trás e vi que ela se virava também. Sorriu de novo e partiu. Rodei e segui os outros zombies.

Foi talvez  uma visão que se foi embora, ou fui embora dela.



Os anos lançados uns sobre os outros, como estes sacos de terra que agora largo dos ombros, ameigaram aqueles olhos que, ainda, de tempos a tempos, falam secretamente com os meus.


Lisboa, Janeiro de 2002
25 de Abril de 2009
João Rodrigues

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