domingo, 3 de outubro de 2010

O telefone toca… toca… e a Morte não atende

O telefone toca… toca…
e a Morte não atende 


O meu amigo Rómulo fazia juízo cínico e feroz da sua mãe, uma mulher que teria mais ou menos a minha idade. O rosto dele contraía-se, os olhos desorbitavam e as palavras pareciam folhas de serrote com dentes partidos a enrolarem-se numa dislexia nascida da espuma que nos cantos dos lábios se formava em rebentação, ao construir o atrito mais inclemente a respeito daquela mulher.

O Rómulo, parecia querer defender a honra do pai, invec-tivando, criticando e inventando a mãe e reinventando o pai. Responsabilizava-a por tudo que de mal lhe acontecia, incluindo a partilha do espaço estreitado na pequena casa que era do avô e onde os três tinham vivido: o avô, a mãe e ele.

Dela, era a culpa do pai ter ido viver com outra mulher: a Mia. E, dela era a culpa, de o pai estar hoje, sozinho. Ela era culpada da separação dos filhos, pois que, se o Rómulo morara com ela e o avô, o outro filho, o Acácio, vivera até juntar os seus trapinhos aos trapinhos da Lúcia, com o pai.
Dos seus problemas psicológicos e limitações de socialização, eis a responsável pela sua tacanhez.
Do seu desaproveitamento escolar; do mau emprego; do curso de formação profissional com saída de emergência no estágio que faria, do desemprego a prazo anunciado… a culpa era dela.
Da necessidade de controlar os gastos, sem receitas que pudessem ser aplicadas na cozinha dia a dia. Culpada!


Foi então que comecei a compreender, através dos olhos do filho, a Alda.
Dizia-me ele que deveria conhecê-la para poder julgá-la com um conhecimento real e abalizado da pessoa em causa.
Cobras e lagartos poderiam fazer com que a imagem criada fosse a da frialdade do sangue réptil. Contestei os seus argu-mentos com a força dos vários cinzentos que ficam esmagados entre o preto e o branco. Procurei que olhasse a vida como algo pessoal e, de tal modo intransmissível, que não pode ser vivida por mais ninguém, senão por aquele que a vive. Tentei que se visse na pele que vestia: de filho desagradecido, desobrigado e cego de ciúmes por conta de outrem.
Sei que lhe atenuei desgostos, que o fiz virar e espreitar o outro lado da moeda, a qual ele olhava, até aí, obsessivamente, na mesma face. Outras faces de outras moedas o ajudei a voltar. Acho que era parte do que ele buscava em mim, uma espécie de pai-adoptivo-e-substituto.
Bom… Nada disto interessa, a não ser para emoldurar, com um ripado bera, a tela que rudemente ilustro a seguir.

A Alda, percebi mais tarde, não sabia dizer não. Via todos e cada homem como um sexo erecto, satisfatório e inconsequente. Um falo desejoso e confuso, por se tratar de um ser mal-pensante.
Não procurava ninguém. Era apenas vulnerável às insinuantes carícias com as quais qualquer amigo – ou que o não fosse ainda – a tocasse. Ela estremecia nas palavras do desassossego prenunciado e entregava-se, voluptuosa e servil, às ternuras mal tentadas, por entre as quais entrevia a esperança definitiva de achar a mulher diferente que desejava ser, vivendo fora daquele silêncio a que se submetia, por um medo absurdo de ser livre.

No tempo em que trabalhei com ele, o Rómulo, certamente elevara o meu nome e as minhas opiniões ao altar da veneração doméstica, tornando-me num indivíduo familiar a todos naquela casa. Até que o avô se finou e o meu amigo partiu para casa da namorada.
   Um dia, para aí dois anos mais tarde, conhecedor da minha situação de desempregado crónico, ligou-me a combinar um en-contro com a mãe, em cujo emprego iriam admitir, com urgência, uma pessoa para trabalhar por turnos.
Lá fui travar conhecimento com a pessoa em causa e com uma curiosidade tal, que a hipótese de emprego junto dela criava expectativas que me eram estranhas em relação a alguém que nunca vira e com a qual nunca tinha falado.
Que era uma mulher amargurada mas esperançosa. Que dali a poucos dias, quando ela começasse as férias, iríamos à praia os dois. À procura de sol, como os lagartos e, afinal, nem sombra de répteis. Só sangue quente.
Da praia, passámos, a passeios nocturnos e bares intimistas. Daí a outros jardins e recantos cansados de ver sempre os mesmos pares de sombras em busca dos corpos originais.
Nem a todas as tentações resisti, mas fi-lo galhardamente, ante aquelas que pudessem configurar a assunção da mais definitiva esperança que a Alda buscava nas suas sucessivas relações. Dei o que tinha para dar.

De mulher deitada, a mulher vertical, foi transformada num sopro de vento místico, pois não compreendi como poderia ter contribuído para tal mudança.
Desse modo, sem pretensões, lá fomos reconstruindo parcelas de nós mesmos, nas partes do tempo que nos concedíamos.
Então, ela vivia sozinha. Telefonávamos, de vez em quando, a fim de combinar um encontro. Quem chegava primeiro esperava pelo outro.
Por altura das férias, era tempo de recomeçar na praia. Nunca um telefonema falhara ou ficara por responder.

Depois de um desses dias passados entre a maresia e a brisa quente de Agosto, abandonei a casa dela. Nessa sexta-feira com-binou comigo, voltarmos a encontrar-nos naquela praia na se-gunda-feira seguinte.

Cheguei cedo. Como de costume, quando tal acontecia, dei tempo de me convencer que já não viria, antes de resolver ligar para saber o que lhe tinha acontecido.
O facto dela morar sozinha era motivo de preocupação para mim. Se acontecia algum imprevisto, algo nos impedisse de aparecer, telefonávamos, como combináramos. Nessa segunda-feira, não foi o caso. Ela não telefonou… Liguei-lhe. Tocou uma… duas… seis vezes… “Chegou à caixa de correio de…” Desliguei.
Decidi esperar mais algum tempo, já que ficaria na praia, até à hora costumeira para regressar a casa.
Passei uma vista de olhos no jornal gratuito que tinha recolhido na estação e, depois de um cigarro, meti-me no mar refrescante e tranquilo na maré baixa. Voltei, enxuguei-me na toalha e comi uma sandes. Fiz as palavras cruzadas do jornal. Acendi outro cigarro, peguei no telemóvel para ver se tinha alguma mensagem deixada enquanto estivera na água. Não tinha.
De novo liguei para a Alda a pensar, por que raio tocava o telefone até chegar ao voice-mail sem que ela atendesse.
Embrulhado nos meus pensamentos comecei a lembrar-me de lhe ter dito que a fechadura da porta da casa dela era pouco segura… Que, se ocorresse qualquer tipo emergência, ela estava só. Que desde sexta à noite até hoje, tinha tido muito tempo para me comunicar qualquer impedimento que tivesse surgido. Noutras ocasiões ela nunca deixara de ligar.
Tinham-se passado duas horas desde que sabia que ela não apareceria naquele dia. À espera que o comboio partisse, tornei a ligar com resultado idêntico.

Ao chegar a Lisboa, fui à casa dela.
Não me sentia à vontade para me intrometer na sua vontade de não atender o telefone. Éramos dois estados independentes, cujas soberanias se faziam valer interagindo e comunicando em caso de necessidade de aproximação. Nada de invasões e ingerências que pudessem abalar a mútua confiança e a paz sustentadas numa fronteira flexível mas, ainda assim, fronteira, somente atraves-sada pelo acordo recíproco estatuído.
Toquei à campainha. A resposta, porém, foi mais silêncio e sossego. Paz de sepulcro.

Atravessei e desci ruas, entre medos, até chegar à paragem do autocarro que me transportaria até perto de casa.
Não sei se nos meus olhos se lia a agitação e o pânico que já sentia. Tentei racionalizar.
Era isso: por um conjunto de coincidências ela perdera o telemóvel… ou o deixara em casa, esquecido… ou podia não ouvir as chamadas, se tivesse o telemóvel no silêncio… ou estivesse num hospital… Lá ia eu outra vez…
Ter-lhe-iam roubado o telemóvel? Tê-lo-ia perdido? Então e se a tivessem assaltado em casa? Não seria capaz de responder, se se encontrasse maltratada, amarrada ou morta, como se noticiava nos jornais diários em cada edição.
Dizia não mas pensava sim. Era possível! Assim como eram possíveis, uma enormidade de situações todas diferentes para que isto estivesse a acontecer.
Liguei-lhe à noite… Estava morta! Só podia estar morta…

Durante o dia seguinte, entre as várias chamadas que recebi nenhuma era da Alda ou do Rómulo. O mundo girava sem sobres-saltos. Tentei ainda duas vezes, de manhã e à noite.
Será que a tinha ofendido sem que me apercebesse disso, e ela não quisesse agora, simplesmente, falar comigo?
Pus-me a repisar todos os passos daquele último dia passado com ela para trás e para diante… Nada. Escrutinei as palavras ditas, e as outras mais escondidas no meio daquelas, até à espinha do peixe assado do “Ilídio”… E nada. Medi os tons… Procurei ambiguidades… Nada.
Apesar disso, há pessoas cujos limites de compreensão aper-tados lhes dá para imaginar além da intenção do que foi dito e compreendem o que se não quis dizer. Rebusquei tudo outra vez. Nada… nada e… nada.

Na quarta-feira a impaciência tinha dado lugar à exigência de uma explicação.
Na esplanada próximo de casa, liguei-lhe de novo. Não perce-bia como era possível o resultado ser inalterável.
A Alda estava morta nalgum lado… num canto da casa… em qualquer sítio. Eu sei lá onde… Estava morta, pronto. Ponto.
Mas não queria acreditar. Morta com o telemóvel ligado? Era possível. E os filhos? Não teriam tentado, entretanto, falar com a mãe?
Enquanto bebericava o café e sorvia depressa, sem dar por isso, o uísque, escrevi uma mensagem no telemóvel: – “Alda, Não atendes porquê? Se não disseres nada até à noite de hoje ligo ao Rómulo”.
O resto do dia arrastou a lentidão do silêncio até o prazo do meu ultimato expirar.
Mais uma vez o telemóvel vibrou, dançando a deslizar sobre tampo da secretária, ao lado do computador. Atendi.
Do outro lado a voz da “defunta” sobressaltou-me tanto como se ressuscitada naquele instante. Que nunca conseguira atender o telefone antes de eu desligar e não tinha saldo para poder ligar-me, nem tivera dinheiro para ir à praia, quanto mais para fazer o carregamento do telefone. Só agora, conseguira coragem para pe-dir a uma amiga que lhe fizesse o favor de o carregar para falar comigo.

Enfim. Há sempre gente, como eu, que, não tendo onde cair morta, o que gosta mesmo é de estragar aos outros os velórios precipitados na agenda do dia seguinte.

                                                                                                           



Lisboa, 26 de Agosto de 2010
João Rodrigues

1 comentário:

  1. O Telefone toca...toca e a Morte não atende..
    Esse texto foi um dos maiores, porém muito bem elaborado, e apesar de todo o contexto tb. é de certa forma engradíssimo.. há que posso dizer, como só falo com o coração e não sei mentir..
    Maravilhosoooo
    Parabéns ao Autor: João Rodrigues.

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