sábado, 19 de fevereiro de 2011

O "predador"

O “predador”


– Hoje estou imprópria para consumo – desabafaste.
Observei-te com mais atenção para encontrar os vestí-gios que a noite deixara presos em ti. Vi a tua palidez, o teu olhar cansado de olhar, os lábios à procura do lugar onde costumavam sorrir.
Estavas perfeitamente “consumível” para um predador voraz como eu sempre à espreita que a presa abalada, tombasse a cabeça no meu ombro disponível.

– Não quero abusar assim de ti – continuaste. –  Sei que posso contar contigo e, quando me sinto a caminhar sobre as águas e de fé abalada, é a ti que recorro como a um deus-irmão, para que me sustenhas, me impeças de afundar.
– Estás maravilhosa, como sempre. Só precisas de te abandonar às vagas dos dias, deixar que as coisas se re-solvam na espuma da rebentação…
– Preciso que me ajudes a passar as tormentas – intrometeste-te. – Não que inventes sessões avulsas de psicanálise e poesia marinha…
E concluí enquanto prosseguias.
– …e então, verás, que toda essa espuma desaparece bebida pelo areal sequioso do qual somos infinitesimais grãos.
– …como mais uma teia em que hei-de prender-me. – Dizias. – E o que preciso é de me libertar, de acender no restolho das esperanças que ajuntei, o fogo de um futuro que, embora breve, me ilumine da felicidade que, como qualquer pessoa, preciso sentir.
– Deixa então que te ofereça a ardência do refúgio que inventarás no meu corpo. Não posso deixar de ser o que sou. Esta voracidade está na minha natureza. Alimento-me da debilidade dos fracos, das suas indecisões e cobardias.
– Não é isso que eu quero… ou que quero de ti.
– Mas é isso que eu tenho para dar, visto que a nossa amizade longínqua e, até agora, inabalável, se tem com-posto da minha espera, enquanto respiras como a caça que fareja no ar o perigo emboscado. Vou disseminando, no teu caminho que acompanho, pequenos prazeres, doces ardis, que te trazem até mim.
– Tu não és assim como dizes. E não são as tuas malícias ou artifícios que me desconstroem e conduzem insegura, sofrida e desencantada. Pelo contrário, resgatas-me à ingenuidade para absorver, viva, as ternurentas armadilhas e loucuras que me prendem cada vez mais. E, apesar disso, abres as tuas mãos que me retêm e, com voz vacilante, dizes: Voa!
– A verdade é que estás saborosíssima hoje. Tal como sempre te encontro nos meandros dessa fragilidade sugestiva. Não sei já se estou cansado de te amar sem te possuir ou de te possuir sem que me tenhas amado.
– És um cínico, sem dúvida. Dispo e visto a pele da minha alma sob esse teu olhar de caçador que ama a presa e lhe faz pulsar o sangue, devora-a com os sentidos despertos mas calados, antes do ataque que nunca acon-tece, apesar de inebriado pelos sinais, trilhos e pistas que espalho para ti. Afinal, só me deixas mais submersa em solidão cada vez que sais por essa porta, largando, atrás de ti, conselhos, que só por ti deviam ser usados.
–  Não podes…
– O quê… Amar-te?

                                                                                 Lisboa, 19 de Fevereiro de 2011
                                                        João Rodrigues

1 comentário:

  1. Gosto..
    e recomendo...
    Uma estória linda, embora gostasse de sentir menos o impacto da leitura sobre mim mesma.
    Mais não posso.. e leio até o final pois do contrário que graça teria ???
    Parabéns ao autor: João Rodrigues.

    ResponderEliminar