domingo, 13 de fevereiro de 2011

Reencontro

Reencontro


Cada vez que passo na tua rua, ao olhar a janela de sacada do primeiro andar, revejo-me nela, a fumar tran-quilo, a olhar o céu azul com o jacarandá florido que se abre em nuvens lilases, a projectar sombras e lantejoulas sobre o chão em que nos amámos.

Lá porque emigrei de nós um dia, não significa o olvido, o abandono ou a traição. Não te poderia esquecer porque não queria, e deixar-te face ao desencanto, não foi mais que devolver-te ao espaço e à vida, como a um ecossis-tema do qual fazias parte, e antes te pertenceram. Traição sim. É verdade. A mim, à minha existência, aos meus sonhos que amputei.
Aqui, longe, acompanho com saudade, os teus sucessos. Sei que cada um deles é composto das camadas exteriores que se vão sucessivamente depositando, na forma como passas por outras tantas experiências relacionais. Mas tem como endoderme a tua passagem por mim. Uma oculta, mas indelével marca de água, sobre a qual grafas os teus êxitos recentes.
Assisto, através do olhar expositivo de alguns amigos, ao lançamento do último livro. Se o obtenho, vai juntar-se aos anteriores que acompanham a pasta onde permane-cem diversos originais manuscritos e constituem um ar-quivo das tuas obras completas. Completas, não por esses textos que me dedicaste, mas porque sou, eu próprio, parte desse espólio, sem o que ficaria, irremediavelmente, inacabado o trabalho criado com os teus sentidos e as tuas ideias e mãos que me esculpiram.
É verdade que desejo encontrar, quando te leio, referências, lugares, alusões, imagens subtis que nos teus actuais escritos me transportem por uma porta misteriosa a um interior de ti onde eu ainda more, me encontre e possa perdoar.
Mas não. Nas entrelinhas descortino, por vezes, para além de uma luz que reconheço, uma paleta de cores quentes a anteceder poentes que foram nossos, ou ainda, fios de luar que entressinto abrir a noite das palavras mais escuras.
No entanto, é já a urgência que te ocupa, e faz que te espraies num delta de delícias entre a calma obscuridade das margens que te abraçam. Procuras, aliás como sempre o fizeste, o mar, que voltas, sempre e sempre, a alimentar da tua força e serenidade, da tua dor e da magia de prazeres cariciosos que só tu consegues inventar.
Ao pôr isto no papel, quis, talvez, praticar um exorcismo sobre a memória que me avilta, quando, de passagem na tua rua, olho para a tua janela cerrada, e vejo na ferocidade do tigre do tapete largo no soalho da sala, o combate dos nossos corpos, em marés de sal engastados, a tentar extrair o deleite que ao outro se dedica.

Agora, quando passo, ao olhar a tua janela, sinto-me livre dos nossos fantasmas que se espreitaram escondidos no tempo. E, com o poder do qual me invisto, ao assinar deste modo insolene, esta acta, acerca dos anos de-corridos, revogo a ausência, o vazio acidentado, o nosso desencontro incidental e, com a mais completa falta de vergonha, decreto o reencontro para sempre.


Lisboa, 3 de Janeiro de 2011

João Rodrigues

1 comentário:

  1. Reencontro...
    Achei lindo..mais complexo tb. Temos que ler com uma certa calma e cautela para entender o que o Autor quer nos dizer. Comigo foi assim.
    Mais acho que entendi... como todo leitor pelo menos o que me foi permitido..
    Parabéns João Rodrigues.

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