sábado, 5 de fevereiro de 2011

A noite nova





A noite nova


Com o ombro encostado à divisória de vidro da paragem dos carros eléctricos, o homem com as mãos nos bolsos do anoraque branco, permitia aos seus olhos apreenderem a agitação da noite que, com os seus longos cabelos brancos, sem embaraços aparentes, dançando, rebolando a cintura de mão em mão ao som da banda e, sorvedora, buscando a embriaguez espumosa de garrafa em garrafa, falecia.
Ele viera ali por isso – e só agora se dava conta de tal – para enterrar um nado monstruoso e triste que nascera no ventre da incerteza e desesperança e que, durante doze meses inteiros, estivera sexualmente activo em nós, e gerar e sugerir o parto do seu filho dilecto: o novo ano que aí vem com as mandíbulas armadas de estiletes afiados e de fauces escancarada para, sem subtilezas desnecessá-rias, devorar o que de nós ainda restar.

Antes, quando chegou, meteu-se por carreiros movedi-ços, abertos na floresta de pessoas, pernas,  garrafas, bra-ços, copos, corpos com apêndices de vidro donde jorravam alegria e torpor. Foi levado como célula sanguínea que alimentava aquele compacto ser nocturno, em sobressalto, solavancos e ritmos. Focos coloridos adejavam sobre o povo, para em seguida se recolherem aos favos da sua colmeia luminescente e ruidosa.
Depois de voltear em trajectórias labirínticas, não conseguindo, ou não querendo, bater-se para rodear a figura equestre do monarca antigo daquela praça, foi excrementado por um dos tubos que a horda fazia e refazia em movimentos volúveis.
Despejado no tapete de calçada portuguesa, no limite do largo, do lado do arco triunfal, atravessou a via dupla de carris para se refugiar na paragem dos eléctricos, onde, por não haver um lugar vago onde se sentar, se apoiou contra um cartaz publicitário, envidraçado de luz, no interior desse abrigo destinado a quem espera. Esperou.
Esperou que as dores nas pernas se desvanecessem; passaram. Esperou um telefonema combinado; não acon-teceu. Esperou que os pensamentos se realinhassem fora dos acordes gritados pela aparelhagem no palco; con-seguiu. Um rosto conhecido ao alcance na penumbra; não passou. O auge da festa como quem espera a própria morte; e este chegou, devagar, ruminando, pachorrento, cada minuto.

Envolvido na lentidão pendular do tempo, pensava na razão de estar ali suspenso. Ela não aparecia. Não telefo-nara, pelo menos a dizer que, afinal, não queria assistir à degradação e estertor da velha de trezentos e sessenta e cinco noites, passadas como se tivessem sido outros tantos anos de escuridão, finalmente, lançados para a cova mais profunda da memória. Queria, talvez, fazer o ofício fúnebre com doze passas e espumante, dentro da sua própria solidão ou, no recato familiar mortificada.
Amortalhar esse período no lençol de névoa do esque-cimento e celebrar aquela morte, desde o berço envolta em panos de pobreza,  egoísmo, e feroz exaltação de um poder desmedido.

A música sofreu um fanico. Desvaneceu-se num suspiro longo de acordes moribundos. A multidão, que por o ser, parece imensa e tentacular, é uma massa indizível de gente ululante e saltadora. Sorrisos, aconchegos de voz sugestiva em ouvidos expectantes, gritos e gargalhadas, aplausos e abraços.

Voltou a prestar atenção às numerosas pessoas que, entretanto, preencheram o abrigo onde se encontrava.
Um casal jovem sentou-se na beira do passeio. Um homem, por vezes, falava com o rapaz que, com a namorada, estavam aos seus pés. Quase sobre o lancil do passeio, voltava as costas ao largo e olhava-o a espaços a confrontá-lo. Lentamente, porque aguardava as badaladas sinistras que se transformariam em luzes ribombantes, fogachos e jorros coloridos, ia soltando a rolha da garrafa do vinho espumoso.
A mulher que encostara o ombro ao painel, acompa-nhara com movimentos enleantes a música estridente e tirou de um saco que tinha no chão, um conjunto de copos de plástico. Quando o fez, encostou com força sugestiva ao indivíduo de anoraque branco, as nádegas que ainda fremiam, electrizadas pela sonoridade que a impregnava.
O homem da garrafa olhou-os com o rosto fechado.
Do palco soava, ecoado pela turba: …Quatro. Três. Dois. Um. Estamos em dois mil e… ! – Gritava o som.

Tinha sido dado o salto fatídico. Aí estava o descendente daquela noite que ficava pela metade de si mesma. E as nádegas continuavam lá, a conduzirem-no a um luto rápido e esquecimento de tudo.
 Ao redor saltaram as rolhas das garrafas. O homem verteu a espuma fina, que se evaporava como a noite, nos copos estendidos. Por todo o lado os afagos discretos e exaltações paradoxais, davam lugar a amplexos apertados e ósculos mais ou menos ternos. Estrondeava o fogo-de-artifício e sibilava o fogo preso que sitiava a praça a partir dos telhados. Sobre o rio o espectáculo coloria o veludo preto do céu. Gritavam vuvuzelas, reco-recos roucos, sire-nes incendiavam o âmago dos silêncios entrecortados. Os olhares chispavam reflexos brilhantes e apagavam-se de-vagar ao extinguir-se um resto do lume aéreo.

A mulher, manteve a alegria aparente e devoção à cerimónia, enquanto a aparente família a abraçou e beijou sem particular efusão, ficando quase todos agarrados ao desconhecido com anoraque branco, por detrás dela. Ela voltou-se, sorvendo o líquido claro, olhou de frente o estranho, envolveu-o com os braços e o riso aberto, du-rante largos segundos, ele sentiu pulsar o peito quente dela no seu, e os dedos dela a percorrer-lhe sem pressa os músculos tensos das costas e a nuca.
Três pares de olhos e, talvez, outros mais que não viu, olhavam-nos sem expressão. Ele, por sua vez, espantado, devolvia o olhar mudo de inquietação, sem mais prazer que a certeza do erro de ter ido ali sozinho para ser testemunha da execução da última das noites miseráveis. Parado, preso na surpreendente mulher, procurava achar, pelo menos, um meio sorriso de desculpa ou agradeci-mento que não surgia, quando ela lhe aflorou os lábios com os dela, indiferente e desbragada.
O outro, com o copo já vazio e a garrafa nas mãos, deu um passo na sua direcção, de rosto fechado e olhar velado como o ar em volta, saturado do nebuloso fumo, parecia querer rebentar na cadência do foguetório. Fixou a mulher de relance e voltou a varar os olhos do estranho. Ergueu a garrafa e ofereceu com voz sossegada.
– Quer beber? Nós não queremos mais. Não temos é mais copos para lhe dar…
E ela, com o calor do sorriso sempre aceso, apoiou.
– Bom ano novo…
O filho afastou a mãe para o abraçar também.
Foi enlaçado com força e sentiu um frio entrar-lhe pelas costas até ao fundo do peito. Escorregou encostado ao vidro, enquanto sentia alagar-se no sangue que corria quente.
Falou pela primeira vez na noite que já finara e no dia que nunca chegaria a nascer:

–  Ano morto, ano posto. Viva o Ano N…
Lisboa, 1 de Janeiro de 2011
João Rodrigues

1 comentário:

  1. A Noite Nova.
    E Que noite..diga se de passagem..
    estória forte, triste e ao memo tempo fulgaz e emocionante..Gosto por ser diferente, temos que puxar a memória para saber ou tentar saber como será o final.. RS RS
    Parabéns ao Autor: João Rodrigues.

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