domingo, 13 de fevereiro de 2011

A Idade dos Porquês ou O sentido da língua

A idade dos porquês
ou
O sentido da língua


Perguntas-me porquê.
Porque é que eu te pergunto, tantas vezes, porquê?
E como tudo precisa de uma razão para manter os equilíbrios da natureza e do cosmos, revelo-to sem rebuço ou simulação.

No entanto, antes, poderia dizer-te que se to explico agora é para que esses equilíbrios não sejam afectados, do mesmo modo que o meu mundo corre o risco de ruir quando as dúvidas me abalam e as tuas respostas não chegam ou vêm carregadas de incertezas universais.

Pois é simples, muito simples mesmo.

A resposta a esta tua questão é que estou agora na Idade dos Porquês.
Passei já todas as outras idades, marcantes como a Glaciar, a Média, a Idade Moderna. Enfim, fui crescendo, aprendendo coisas. Todas as coisas que me era dado absorver através da experiência. Isto porque desde criança aprendi tudo o que pôde, não porque perguntasse – nunca fui grande perguntador, mercê da timidez assanhada que me consumia como uma doença, quiçá, genética – mas porque experimentava com os meus sentidos os sentidos que as coisas tinham.
Usei para esse fim todos os recursos ao meu alcance.

Escutei. Calado, ouvi como quem escuta e, nem tudo fazia sentido. Algumas dessas coisas, varadas pelo tempo, passaram a ter significado e a impor-se pela lógica. Muitas outras, ainda hoje, permanecem dúbias, nebulosas ou, apenas, insignificantes para além do ruído de fundo… Percebi que das tuas palavras se evolavam os sentidos todos e te ausentavas de nós… Aprendi que tinha que dar-lhes outro sentido.

Também vi. Olhei ensimesmado e, se me deslumbrei, foi pelo pensamento árduo, alavancado. Quanto observei, do mais hediondo ao mais belo, verifiquei que tinham as cores, o brilho e profundidade do amor e da nostalgia, da dor e do espanto, da paixão e da procura.
Da transparência das almas, eu vi que são opacas… mas aprendi a transparecê-las.

Cheirei. Inalei na inspiração o vivo e o morto que fediam. O odor a flores velhas dos defuntos, o cheiro policromado dos ventos, a terra chovida como pintada de fresco, a secura dos campos em pleno Estio. Só por respirar senti o aroma do teu corpo com o meu misturado… mas aprendi que, preso no teu cheiro, adormecia feliz.

Tacteei. Apalpei, agarrei; senti e descobri as dobras e as formas. Feri-me nas arestas entre o sonho e o pesadelo. Achei o arredondamento do mundo prenhe nas minhas mãos, e prendi-lhe nos meus dedos as asas, para que não voasse para longe de mim… mas aprendi que fugia sempre.

Saboreei. Degustei a terra e a água, as ervas, o mel, o vinho e o pão. O sabor do ferro e do chumbo, da seiva e do sangue. Até o paladar da fome tem cor: é negro-negro; e tem uma forma fina… aguçada, com cheiro a lume-frio.
Descobri que gosto do gosto que a vida tem. Ora doce ora amargo, como tu… e isso eu aprendi em ti.

Mas do que falo é do outro sentido. Do sentido que damos às coisas, quando as coisas nos são dadas pelo que sentimos, falamos ou escrevemos. É o sentido da língua.

O último sentido. Oculto, escondido entre sabores, é o sentido revelador que confirma e descobre cheiros e traz claridade à tela, para com crueza revelar a imagem que pinto, reinventando-te, na memória dita.

Que sensações a língua transmite! De poder e de humildade nas palavras ásperas ou macias, no grito revoltado, ou num murmúrio nervoso… Tudo a língua sente e dá a conhecer: desde o gelo afiado da dor da lonjura, ao calor brando do teu corpo de vertigem.
O sentido da língua, mais que buscar fundo nos outros cinco sentidos, é ele que me questiona se o sal do mar é a camada de azul que o reveste ou se o céu sabe a um infinito nublado ou à via láctea na noite mais acesa.
A língua junta todas as palavras para dizer as incertezas que as minhas outras sensações mascaram. Depois quer as respostas – que preciso que me dês – para saber se fala ou não do prazer de te saborear na cumplicidade da tua língua a experimentar-me finalmente.

É traiçoeiro, aquele que trai o que lhe é confiado, ou adultera aquilo que fielmente deve transmitir. Assim é a língua que morde, mastiga, engole e regurgita sons que não espelham e não são fiéis ao que os outros sentidos lhe confiaram.

É um sentido único e proibido ao mesmo tempo. Porque a nenhum dos outros se compara por ser um sentido colectivo, por assim dizer, a conjunção dos restantes cinco, e porque, quando se cala, silencia a expressão dos demais sentidos.

É que, quando vejo o que olho e não consigo lobrigar as coisas que observas; quando tomo o teu cheiro e paladar ou te toco, não adivinho o que respiras, saboreias e sentes, deleitosa ou aborrecida. Preciso que me digas…


 Lisboa, Outubro de 1996
João Rodrigues

2 comentários:

  1. Idade dos Porquês ou O sentido da língua

    Amei...
    Parabéns ao Autor.
    João Rodrigues.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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